Meu caro Caetano:
Como te disse na carta anterior, a Monarquia que deve tomar conta dos destinos da Nação, se algum dia soar a hora desse acontecimento transcendente, é a Monarquia tradicional, aquela que nasceu com Portugal, em 1128, e expirou, de facto, que nunca de direito, em 1834, às mãos do estrangeiro.
Mas a Monarquia tradicional, a nossa Monarquia
tradicional é uma. Não é a minha, nem a tua; a deste ou a daquele; a que o teu
vizinho da direita giza ou parafusa, ou a que o teu vizinho da esquerda
congemina ou trauteia.
A Monarquia tradicional portuguesa é uma, e não se
mascara disto ou daquilo, não se disfarça em dominó azul ou vermelho, cinzento
ou furta-cores; essa Monarquia não entra no terreno adversário, para nele caçar
– por esta simples e decisiva razão de que para ela não há adversários, pois só
conhece e reconhece portugueses; não usa anzóis com isca, para conquistar
amigos; não finge, não engana; não desce à baixeza de se degradar ou vender,
para colher aplausos ou elogios suspeitos.
A sua linguagem é a que falou sempre até 1820, até esse nefasto e abominável 24 de Agosto, e voltou a falar desde 1828 a 1834. Linguagem portuguesa, castiça e clara que todos, de alto a baixo, entenderam, e não precisará de intérpretes de inglês, francês ou... russo.
Era a Monarquia de um só nome – portuguesa; de uma só fonte – Portugal; de um só direito – português; de um só propósito – servir Portugal.
A Monarquia portuguesa foi sempre uma Monarquia Pura,
Perfeita, sem limitações de espécie alguma, senão as do amor a Deus, as dos
princípios da Moral católica, e as do Interesse dos Povos. Quer dizer:
autoritária. Mas autoritária não significa capricho, leviandade, tirania ou
arbítrio; significa independência responsável. Ninguém melhor a compreendeu e
definiu do que uma Rainha, D. Maria Ana de Áustria: «Os Reis são os executores e
os mais ilustres Vassalos das Leis do Reino».
O Rei de Portugal nunca foi chancela inerte, nem
ventoinha à mercê das aragens. Se algumas vezes a pessoa do Rei não esteve à
altura da função real, a culpa foi da pessoa, não foi do Princípio. E tão
manifestamente excepcionais foram esses casos, que bem posso, sem que me arguam
de parcial, dá-los como não existentes.
Andam por aí, agora, umas vozes agoirentas, inspiradas
não sei por que propósitos, a espalhar entre os Monárquicos que a Monarquia
portuguesa foi sempre democrática e que democrática terá que ser. Chegou-se
mesmo ao cúmulo de se escrever que só a Monarquia «pode garantir a verdadeira
Democracia»! E acrescentou-se que a «Monarquia portuguesa tem fundas, seculares
raízes, na sã Democracia»! Querer-se-á dizer «Sã Democracia» por «Santa
Democracia»?!
Verdadeira Democracia... Sã Democracia...
E se estes cavaleiros da Má-Aventura deixassem tranquila
a Causa do Rei, e no seu lugar a Doutrina monárquica, e quietos, os
monárquicos, não fariam melhor?
Quando tudo aconselha a uma dignidade altiva, no meio da
desordem que nos ameaça, surgem-nos certos doutrinadores a lançar a confusão
geral, a semente da intriga doutrinária, a poeira dos mitos revolucionários,
falsificando a História, e preparando-se para vestir à Monarquia ou a camisa-de-onze-varas
das suas trapalhices, ou a mortalha com que há-de entrar na sepultura.
Não, meu caro Caetano; repito-te o que já fiz saber a
quem, pelos vistos, não compreende o que se lhe diz: «Basta!».
Não há falsa Democracia a combater, nem a Democracia
doente a evitar ou a curar. O que há é a Democracia, – aquilo a que, segundo o
texto de Herodoto (Histórias, III, 80), os Persas chamavam Isonomia, e Otánes
queria estabelecer entre eles, sem o conseguir.
A Democracia é o conceito fechado, exarado em textos
canónicos, e aplicado nas orgânicas de alguns povos.
Se na Monarquia a Soberania está em um só, e na
Aristocracia está em alguns, na Democracia a Soberania está em todos, pelo que
lhe chamam, desde tempos imemoriais, o governo do «grande número». De duas, uma:
ou, na verdade, a Soberania está na multidão, e é uma Soberania em migalhas, e
portanto inoperante; ou, na verdade, a Soberania deixa de estar na multidão,
para ser apanágio de grupos ou de um só – e não há Democracia. A falsa
Democracia não é Democracia. Como o soneto, porque tem catorze versos, deixa de
o ser se lhe atribuírem treze ou quinze versos. Como um quilo de qualquer
coisa, com um infinitésimo de grama a menos ou mais, deixa de ser um quilo.
Monarquia democrática é um destes espantalhos que só cabe
em crânios ocos ou em charlatães sem pudor.
Porque se a Monarquia é o governo de um, e a Democracia é
o governo de todos – Monarquia democrática vem a ser o governo em que a
Soberania não existe, por fictícia: não existe em um, porque, por ser
democrática, existe em todos; não existe em todos, porque por ser Monarquia,
existe só em um.
É claro que não me admiro de que aquele disparate saia da
pena de quem já invocou, como garantia dos seus dislates, a autoridade do Sr.
Jaime Cortesão. Efectivamente, para nos definir a Monarquia portuguesa, ninguém
melhor do que um doutrinador republicano! É como quem quisesse definir a Igreja
católica, através dos pareceres do Luteranismo e do Ateísmo. Mas há melhor: os
mesmos patuscos sacodem aos olhos dos leitores um documento recordado em
determinada Conferência, e em que se dá a notícia de que Afonso I se confessa
súbdito de seus vassalos, porque nos conta que foram eles que o colocaram no
trono! Calcula-se...
O documento é falso como Judas. Data do séc. XVI; ou é
obra de Fr. Bernardo de Brito, ou alguém o impingiu à sua fácil credulidade. O
seu editor actual teve a audácia de garantir que tal documento «nos merece fé»!
A nossa Monarquia nunca foi electiva. D. Afonso I
armou-se cavaleiro por suas próprias mãos, porque o Poder real herdou-o do Pai,
e não o recebeu dos vassalos.
Monarquia democrática – a Monarquia de Portugal?
Um dos mais lúcidos tratadistas portugueses, Francisco
Coelho de Sousa e São Paio, definiu assim a nossa Monarquia: «O Império Português
é Monárquico e Pleno, sem outra norma que os preceitos naturais, deduzido da
natureza da Monarquia, e o fim da Sociação; isto é, a conservação do Estado, e
a felicidade do seu Povo» (Prelecções de Direito Pátrio Público e Particular, §
26).
O eminente António Caetano do Amaral ensina que o nosso
governo é «puramente Monárquico» (Memória V, cap. 2).
O grande Pascoal José de Melo Freire escreve: «Os nossos
Príncipes não devem a sua autoridade ao Povo nem dele receberam o grande Poder
que hoje e sempre exercitaram». (Resposta que deu Pascoal José de Mello Freire às
censuras que fez e apresentou o Dr. António Ribeiro dos Santos, in António
Ribeiro, Notas ao Plano do Novo Código de Direito Público do Dr. Pascoal José
de Mello Freire, pág. 65).
E o insuspeito Coelho da Rocha, negando que o governo
tivesse sido «puramente Monárquico ou Absoluto», acrescenta: «ainda que se não
possa assentir à opinião de alguns modernos que inexactamente chegam quase a confundi-lo
com o constitucional» (Ensaio sobre a História do Governo e Legislação de
Portugal, § 63).
Coelho da Rocha falava assim, porque defendia a tese de
que as Cortes eram deliberativas. Hoje, depois dos estudos dos textos, não há
duas opiniões: as Cortes, em Portugal, foram sempre consultivas.
O insigne medievista Sánchez-Albornoz ensina: «aunque no
puede decirse que residiese en ella la facultad de hacer las leyes, si podemos
afirmar que rara vez se elaboraron sin su dictamen» (La Curia Regia portuguesa,
pág. 69). Note-se que Sánchez-Albornoz é espírito de formação revolucionária.
São os factos que lhe impõem aquele parecer.
De facto, as Cortes não reúnem por direito próprio; o Rei
convoca-as, quando quer; ouve-as, como entende; segue-as, se concorda com elas;
decide contra elas, se assim o entender.
O Poder, a Soberania estava no Rei; nas Cortes estava o
conselho, e não a deliberação.
Mas, meu caro Caetano, que queres tu? Para os novos
doutrinadores da Monarquia, que se fizeram, logo de início, apologistas da
Suzana, os publicistas Sousa e São Paio, Caetano do Amaral, Melo Freire e
Coelho da Rocha, não valem absolutamente nada, se os compararmos com o grande
doutrinador monárquico Jaime Cortesão; e os seus estudos profundos que marcaram
época pela erudição, e serão pelos tempos fora, honra da ciência portuguesa, pulveriza-os
o documento falso, reeditado em nossos dias, na tal conferência que fica por
fiadora da confiança que merece!
É com estas autoridades que os novos doutrinadores
monárquicos que o são apenas porque lhes puseram ao alcance das mãos oito
páginas de papel diárias, pois lhes faltam saber, competência e dignidade
mental, é com estas autoridades, a de Jaime Cortesão, e a do documento falso,
que esses novos doutrinadores tocam todos os dias a sineta rachada da Monarquia
portuguesa democrática!
A Monarquia portuguesa foi sempre Pura, Perfeita,
Hereditária – até 1834, não se falando no período nefasto de 1820 a 1828.
Sempre! Os nossos Reis nunca foram eleitos, escolhidos, partidários,
plebiscitados, frutos de facções, filhos do Sufrágio Universal ou restrito. O
próprio D. João I foi Rei, por direito hereditário, pelo melhor direito.
Demonstrou-o, nas Cortes de Coimbra, João das Regras. A sua exposição é toda
histórica e jurídica. O único que prescindiu da história e do Direito, e quis
apelar para a força simplista, foi, se Fernão Lopes não mente, Nun'Álvares. Mas
os factos históricos e as alegações jurídicas que o jurisconsulto desfiou,
impuseram-se à Assembleia política, e ela não votou: aclamou.
No caso único de 1640, não foi o Sufrágio que fez Rei o
Duque de Bragança, nem a Revolução. Esta afastou do Poder o intruso, eliminou o
obstáculo que desde 1580 embaraçava o acesso ao Rei natural e legítimo. E o
Duque de Bragança ocupou o lugar vago, pela força do seu direito hereditário, e
não pela maioria do número dos eleitores.
Quando D. João VI morre, o Rei legítimo era sem
contestação o Infante D. Miguel. D. Pedro deixara de ser português. Mercê das
cabalas maçónicas e revolucionárias, ele, o estrangeiro, porque abdicara a sua
qualidade de português, repudiara a sua Pátria de origem, e se constituíra Réu
de alta traição de passes absurdos, intitulou-se Rei de Portugal, que nunca
podia ser, transmitiu à filha um direito que não tinha, e mandou-nos uma
Constituição, sem competência nem autoridade para o fazer. A Força consagrou
tudo isto. E se essa Constituição, na sua letra, não estabelece a Monarquia
democrática, os factos não ultrapassaram a letra da Constituição, e conduziram
à consagração prática da Soberania Popular, em 5 de Outubro de 1910.
Compreendia-se que os monárquicos liberais, democráticos,
se prendessem à Monarquia constitucional, e procurassem afastar ou retardar o
advento da República, sob o pretexto de que o Povo não estava preparado para
ela.
Hoje, ao fim de trinta e sete anos de experiência
republicana, as monarquias democráticas e liberais são uma aberrante
monstruosidade.
A Monarquia democrática é uma instituição transitória,
ponte de passagem para a República comunizante. Já a tivemos. Tudo se opõe a
que tal Monarquia ressuscite. Gozámos, durante dezoito anos, a República
comunizante que a República autoritária substituiu.
Quem pede, aconselha, preconiza, propaga e exalta a
Monarquia democrática é instrumento do regresso à República comunizante, e está
a servir os intentos e os interesses desta.
A Monarquia democrática é a Monarquia do Sufrágio
Universal, da Soberania Popular, dos partidos políticos, dos Ministérios
relâmpagos, quer dizer, é a negação da Monarquia, o suicídio da Monarquia, o
descrédito da Monarquia. A Monarquia democrática é a República que se não
confessa, mas se prepara e avança. Será tudo o que quiserem – mas não é a
Monarquia portuguesa que fez o Estado português, que fundou a Nação portuguesa,
que deu ao Povo português a consciência da sua missão histórica e civilizadora,
que o levou aos descobrimentos de novos mundos, e à conquista, para a Fé
católica, de novas terras e novas gentes. A Monarquia democrática pode dizer-se
cristã, mas nunca se dirá católica. A Monarquia democrática não é a Monarquia
de D. Afonso I e de D. Dinis, de D. Fernando e de D. João I, de D. Afonso V e
de D. João II, de D. Manuel e de D. João III, de D. Sebastião e de D. João IV,
de D. João V e de D. Maria I, de D. João VI e de D. Miguel. Não é aquela
Monarquia em que houve erros e quedas – a despeito dela; é a Monarquia em que
houve grandezas e glórias, apesar dela, e que ela não soube aproveitar,
valorizar e respeitar, – e tanto que veio a cair na miséria de 1910, em que a
Maçonaria e a Carbonária arrastaram a Nação inteira para o abismo sem fundo.
Mas esta vai longa, meu caro Caetano. Conversaremos ainda
outra vez.
Alfredo Pimenta, Lisboa, 27 de Março de 1947.
8 comentários:
Senhor Reaccionário, que livros recomenda ler sobre Monarquia Portuguesa/Monarquia em geral?
Geraldo (leitor assíduo do seu excelente blogue).
Continuar a ler o VEritatis, e leia o Ascendens e agora o FIdelissimus
Muito obrigado ASCENDENS pela resposta.
Sr. Geraldo, eis os endereços dos outros blogues:
http://ascendensblog.blogspot.com/
http://fidelissimus.blogspot.com/
Gostei
Este artigo, ao qual desconhecia, acaba por ser um resumo de uma parte do que defendemos e acreditamos. Fico a saber que, afinal, JUan Manuel de Prada foi colocar-se no banquinho dos "patuscos".
Caro Ascendens,
Vi publicado excertos desta carta de Alfredo Pimenta num grupo de semi-liberais (ou liberais) que gostam de se auto-proclamar como tradicionalistas. Mas esses excertos mutilavam a carta de forma a modificar-lhe o verdadeiro sentido. Foi assim que resolvi investigar até encontrar o original. Depois de aqui a ter publicado e partilhado nesse grupo de semi-liberais, alguns deles viraram-se contra mim (e também indirectamente contra si e o autor do blogue Fidelissimus) mas sem contra-argumentar. O máximo que conseguiram fazer foi chamar-nos de ignorantes, imbecis, doidos varridos, absolutistas, etc.
Outro facto curioso é que esses semi-liberais (ou liberais) têm uma associação que se diz tradicionalista e que publicamente profere a triologia Deus-Pátria-Rei. Ou seja, eles, como liberais que são, têm duas caras, uma pública e outra privada. Sendo que privadamente são apologistas de que as Cortes/Foros estão acima do Rei.
É o de sempre! ...
Durante anos neles manteve-se a grande e constante vontade de: fazer um grupo político, e que se apresentasse com o nome de "tradicionalista"... e tudo o resto é decoração! E mais não digo, mas que isto foi assim, lá isso foi, e para bom entendedor...
O Juan Manuel de Prada ressuscitou o ataque ao "absolutismo" depois de no Conversas de Café (não lembro o episódio), o Pedro Oliveira ter abordado o tema, aparentemente defendendo o "absolutismo" e denunciar o mau entendimento que dele os tradicionalistas espanhóis tiveram etc... Uma reposta disfarçada de ataque ao Luteranismo, nada de outro mundo, não se esperaria de outra forma.
No séc. XIX até alguns liberais católicos atacaram o Luteranismo e o "absolutismo". Esperava-se agora que um Prada viesse atacar e relacionar o Luteranismo e o Liberalismo! Não!? ... Estranho.... sintomático!!! Onde há fumo ...
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