A chegada dos primeiros escravos


No outro dia, que eram oito dias do mês de Agosto, muito cedo pela manhã, por razão da calma, começaram os mareantes de correger seus batéis e tirar aqueles cativos para os levarem, segundo lhes fora mandado; os quais, postos juntamente naquele campo, era uma maravilhosa coisa de ver, cá entre eles havia alguns de razoada brancura, formosos e apostos; outros, menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como etíopes, tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quase parecia aos homens que os guardavam, que viam as imagens do hemisfério mais baixo.
(...)
O Infante era ali em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês como homem que de sua parte queria fazer pequeno tesouro, cá de quarenta e seis almas que aconteceram no seu quinto, mui breve fez delas sua partilha, cá toda a sua principal riqueza estava em sua vontade, considerando com grande prazer na salvação daquelas almas que antes eram perdidas.
E certamente que seu pensamento não era vão, cá, como já dissemos, tanto que estes haviam conhecimento da linguagem, com pequeno movimento se tornavam cristãos. E eu, que esta história ajuntei neste volume, vi na vila de Lagos, moços e moças, filhos e netos destes, nados nesta terra, tão bons e tão verdadeiros cristãos, como se descenderam do começo da lei de Cristo, por geração, daqueles que primeiro foram baptizados.

Gomes Eanes de Zurara in «Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné», 1453.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito oportuno .... Agora que a UNESCO está a apoiar a lenda negra da escravatura lusa - devem estar agradados espanhóis semi-tradicionalistas e semi-liberais brasileiros (animados pela cenoura "Princesa Isabel).

VERITATIS disse...

Pois, esses tomam a escravatura pelo conceito liberal de "maus-tratos", em vez de seguirem o conceito católico que toma a escravatura como um estado ou condição.
À Anunciação do Anjo, Nossa Senhora respondeu: "eis aqui a escrava do Senhor". Ou seja, estava a assumir a humilde condição de serva de Deus.

Eu disse...

O que mais me tocou:

"... tão bons e tão verdadeiros cristãos, como se descenderam do começo da lei de Cristo, por geração, daqueles que primeiro foram baptizados."

Isto é muito importante.