A Ordem Burguesa


A concepção de existência na democracia é materialista. Vem de Voltaire a sua herança filosófica e ninguém melhor a representa do que os aventureiros de 1830, com Thiers e Périer, gritando para os camaradas: – «Enrichissez-vous! Enrichissez-vous!». Deus ficara para os outros. Ficara para os outros, pelo muito que lhes haviam roubado, a lei antiga da honra que sujeitava as fortunas ao interesse da colectividade e que levantara, por isso mesmo, a Vendeia em defesa dos seus nobres, timbrando sempre em cumprir as suas obrigações de boas autoridades sociais.
A Revolução desembaraçou, ao contrário, a propriedade de tais encargos, que eram seculares. E quem andar um pouco em dia com as coisas da história, verificará que, dos redentores de 89, os que escaparam à obra purificadora da guilhotina acabaram inevitavelmente príncipes do Império e ministros da Restauração. «Ouça cá, Duque de Otranto! – dizia-me duma vez Robespierre». E nesta anedota célebre de Fouché está contido o parvenu que a Revolução elevou de um salto às culminâncias doiradas do poder.
Ora as democracias, desenvolvendo por um lado o arrivismo e por outro o amor do lucro, colocam o Estado ao alcance dos ambiciosos que o souberem conquistar e segurar. Cria-se assim a ordem burguesa, bem caracterizada pela maneira sangrenta como se liquidam em democracia as convulsões populares. Luís XVI morreu no cadafalso porque recuou em frente do alvitre de mandar metralhar a canalha de Paris. Por outro tanto caiu nas jornadas de Julho a Realeza legítima. Já não acontece o mesmo na França republicana, com Clemenceau ordenando os massacres de Narbonne e de Davreuil, e na «livre-América», com o milionário Carnegie, e autor do tal livro famoso, – A Democracia Triunfante, fuzilando por conta própria os seus operários em greve. A ordem burguesa é, pois, a ordem que se defende no Estado unicamente por meio da força e que, não tendo consigo nem um passado nem um futuro, pratica, enquanto lhe é possível, a máxima de Guizot: – «Governar é aguentar-se no poder».

António Sardinha in «Durante a Fogueira».

2 comentários:

Anónimo disse...

Brilhantes palavras do não menos brilhante António Sardinha. E premonitórias. Parabéns ainda pelo seu magnífico Blog. Parabéns aliás dados mais do que uma vez no seu anterior espaço, já vai algum tempo.
Maria

VERITATIS disse...

Obrigado, Maria.

Feliz Ano Novo!