Três paradoxos fundamentais, além de alguns outros de menor importância, viciam o chamado ideal democrático.
O primeiro é o seguinte: a democracia exalta, duma forma especial, a liberdade. À liberdade são dirigidos os mais frenéticos ditirambos e manifestados sentimentos de uma devoção extraordinária. Houve até quem aludisse (Croce) à religião da liberdade como algo em extremo meritório e de aplaudir.
Ora bem! Se a liberdade é um valor, que a ninguém é lícito negar, então a liberdade surge como um imperativo que não suporta contestações. E é isso admissível? A liberdade, nesta altura, constitui qualquer coisa que se sobrepõe às vontades dos homens. Simplesmente, que cada homem faça o que quer não é o que define a liberdade?
Quer dizer: a liberdade, tomada qual norma obrigatória, nega afinal o que é a sua essência.
Admitamos, agora, que a liberdade não é obrigatória, não pretende que todos a respeitem. Eis, então, que é lícito destruir a liberdade. Esta, para não se transformar em regra coercitiva (recordamos o lema não há liberdade contra a liberdade, lema que é flagrante contradição nos próprios termos), passa a dar por legítimo o seu aniquilamento. E eis que também se nega a si própria, porque aceita, qual direito, o combate (acaso vitorioso) contra a liberdade.
Por conseguinte, em qualquer das duas hipóteses (e não há outras) que formulamos, a liberdade auto-aniquila-se. Ela é, portanto, encarada como valor, um erro.
O segundo paradoxo democrático reside no chamado respeito pela eminente dignidade da pessoa humana. Esta é considerada um fim em si, que ninguém tem o direito de desrespeitar. Mas quem é capaz de desrespeitar a pessoa humana? Obviamente, as pessoas humanas e só elas. Os animais ferozes podem ferir de morte a pessoa humana, a natureza pode esmagá-la, mas desrespeitar implica uma tomada de posição ética, que, unicamente, é possível seja assumida por pessoas humanas.
Quem não vê, contudo, que chegamos a um nítido paralogismo? Faz-se da pessoa um objecto de respeito, quando a pessoa é o único ente que desrespeita tal objecto.
Claro que talvez se invoque a tese de que é obrigatório, para as pessoas, o respeito da pessoa. Em tal conjuntura passa-se algo de análogo ao que se passa com a liberdade. O respeito da pessoa, sendo um imperativo irrecusável, para subsistir leva ao desrespeito pelas pessoas pois que as força a aceitar o que elas porventura querem repelir (exactamente o respeito pela pessoa).
Donde se segue, que numa ou noutra eventualidade, a tese do respeito conduz à sua própria eliminação.
O terceiro paradoxo da democracia está no governo do povo pelo povo. Conexiona-se ele, patentemente, com a liberdade e a dignidade da pessoa humana. Sustenta-se que quem se não governar a si não é livre, não sendo respeitada a sua dignidade pessoal.
Segue-se, daí, que a liberdade e a dignidade da pessoa exigem o auto-governo dos homens, logo, colectivamente, o governo do povo pelo povo. Acontece, todavia, que o governo do povo pelo povo é concepção insustentável.
Se o povo governa não há governados. E se não há governados, de que modo falar em governo?
Objectar-se-á, porventura, que em democracia, não é o povo quem directamente governa, mas os seus representantes.
Admitamo-lo. Esses representantes devem ser quem melhor expressa a vontade do povo e para isso, diz-se, é que são por ele escolhidos.
Só que para o povo escolher os melhores precisa de ter mais competência do que aqueles que escolhe (o maior jamais deriva do menor). E nessa altura os escolhidos nunca serão os melhores, ao invés do que se pretende.
E se se sustentar que ao povo não interessa escolher os melhores? Nessa altura, é ele sempre mal representado.
Num ou noutro, pelo mecanismo da eleição, a vontade popular não conseguirá ser adequadamente manifestada. E resta então voltar ao governo directo do povo, que é, insustentável.
De tudo quanto dissemos, uma conclusão se extrai. O chamado ideal democrático é o mais aberto e declarado absurdo.
António José de Brito in O Diabo, nº 1823, 6 de Dezembro de 2011.
O primeiro é o seguinte: a democracia exalta, duma forma especial, a liberdade. À liberdade são dirigidos os mais frenéticos ditirambos e manifestados sentimentos de uma devoção extraordinária. Houve até quem aludisse (Croce) à religião da liberdade como algo em extremo meritório e de aplaudir.
Ora bem! Se a liberdade é um valor, que a ninguém é lícito negar, então a liberdade surge como um imperativo que não suporta contestações. E é isso admissível? A liberdade, nesta altura, constitui qualquer coisa que se sobrepõe às vontades dos homens. Simplesmente, que cada homem faça o que quer não é o que define a liberdade?
Quer dizer: a liberdade, tomada qual norma obrigatória, nega afinal o que é a sua essência.
Admitamos, agora, que a liberdade não é obrigatória, não pretende que todos a respeitem. Eis, então, que é lícito destruir a liberdade. Esta, para não se transformar em regra coercitiva (recordamos o lema não há liberdade contra a liberdade, lema que é flagrante contradição nos próprios termos), passa a dar por legítimo o seu aniquilamento. E eis que também se nega a si própria, porque aceita, qual direito, o combate (acaso vitorioso) contra a liberdade.
Por conseguinte, em qualquer das duas hipóteses (e não há outras) que formulamos, a liberdade auto-aniquila-se. Ela é, portanto, encarada como valor, um erro.
O segundo paradoxo democrático reside no chamado respeito pela eminente dignidade da pessoa humana. Esta é considerada um fim em si, que ninguém tem o direito de desrespeitar. Mas quem é capaz de desrespeitar a pessoa humana? Obviamente, as pessoas humanas e só elas. Os animais ferozes podem ferir de morte a pessoa humana, a natureza pode esmagá-la, mas desrespeitar implica uma tomada de posição ética, que, unicamente, é possível seja assumida por pessoas humanas.
Quem não vê, contudo, que chegamos a um nítido paralogismo? Faz-se da pessoa um objecto de respeito, quando a pessoa é o único ente que desrespeita tal objecto.
Claro que talvez se invoque a tese de que é obrigatório, para as pessoas, o respeito da pessoa. Em tal conjuntura passa-se algo de análogo ao que se passa com a liberdade. O respeito da pessoa, sendo um imperativo irrecusável, para subsistir leva ao desrespeito pelas pessoas pois que as força a aceitar o que elas porventura querem repelir (exactamente o respeito pela pessoa).
Donde se segue, que numa ou noutra eventualidade, a tese do respeito conduz à sua própria eliminação.
O terceiro paradoxo da democracia está no governo do povo pelo povo. Conexiona-se ele, patentemente, com a liberdade e a dignidade da pessoa humana. Sustenta-se que quem se não governar a si não é livre, não sendo respeitada a sua dignidade pessoal.
Segue-se, daí, que a liberdade e a dignidade da pessoa exigem o auto-governo dos homens, logo, colectivamente, o governo do povo pelo povo. Acontece, todavia, que o governo do povo pelo povo é concepção insustentável.
Se o povo governa não há governados. E se não há governados, de que modo falar em governo?
Objectar-se-á, porventura, que em democracia, não é o povo quem directamente governa, mas os seus representantes.
Admitamo-lo. Esses representantes devem ser quem melhor expressa a vontade do povo e para isso, diz-se, é que são por ele escolhidos.
Só que para o povo escolher os melhores precisa de ter mais competência do que aqueles que escolhe (o maior jamais deriva do menor). E nessa altura os escolhidos nunca serão os melhores, ao invés do que se pretende.
E se se sustentar que ao povo não interessa escolher os melhores? Nessa altura, é ele sempre mal representado.
Num ou noutro, pelo mecanismo da eleição, a vontade popular não conseguirá ser adequadamente manifestada. E resta então voltar ao governo directo do povo, que é, insustentável.
De tudo quanto dissemos, uma conclusão se extrai. O chamado ideal democrático é o mais aberto e declarado absurdo.
António José de Brito in O Diabo, nº 1823, 6 de Dezembro de 2011.
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