A crença em Deus assenta em o que podemos chamar um acto de fé racional. Consciente ou inconscientemente, o movimento do espírito é este: (1) Tudo quanto existe é efeito de uma causa; o universo existe; portanto o universo é efeito de uma causa. (2) O efeito não pode conter mais que o que está contido na causa, (pois então seria efeito de mais causas que uma); o universo, no mais alto ponto em que nós o conhecemos, que é o homem, contém a consciência; portanto a causa do universo deve conter a consciência, isto é, deve ser uma Causa consciente. (3) O efeito não pode conter tudo quanto se contém na causa, pois então seria idêntico à causa, e não haveria causa nem efeito; o universo é múltiplo, extenso (no tempo e no espaço, ou no espaço-tempo) e diverso (isto é, composto de coisas não só muitas mas diferentes entre si); portanto a causa do universo tem que conter mais que multiplicidade, ou seja totalidade, mais que extensão, ou seja infinidade, mais que diversidade, ou seja plenitude. (...)
Por qualquer especulação desta ordem, em geral subconsciente ou instintiva, chega o homem à crença racional na existência de Deus.
Fernando Pessoa in «Textos Filosóficos».
6 comentários:
DEUS NÃO EXISTE
É impossível contestar que Pessoa foi um génio e, sem dúvida, tratou com profundidade uma multiplicidade de assuntos, inclusivamente os filosóficos. Neste pequeno texto, só tenho dois reparos a fazer-lhe. O primeiro relaciona-se com a expressão "acto de fé racional". Parece-me que inclui conceitos mutuamente excludentes. A fé define-se precisamente por ser um assentimento dado a uma verdade por causa da autoridade divina, que no-la revelou. É um exemplo típico daquilo a que os escolásticos chamavam uma verdade de evidência extrínseca. Quando se apela à razão, apela-se já não à autoridade, mas à luz natural da inteligência, que abstraindo as essências das realidades sensíveis, julgando e raciocinando, alcança umas verdades através de outras que a precedem em certeza e clareza - aquilo a que chamaríamos evidência intrínseca. Assim, de um lado temos um assentimento que, por ser livre, é obra da graça divina; de outro, temos um assentimento necessário, em virtude da razão. Não podem, por conseguinte, ser simultâneas no mesmo sujeito. Isto não quer dizer que não haja verdades de fé que não possam ser quer objecto de fé, quer objecto de demonstração racional - mas estas razões do assentimento não podem é subsistir ao mesmo tempo no mesmo sujeito. O segundo acerto tem a ver com a premissa maior do primeiro argumento, que a ser tomada sem uma distinção ulterior não só é falsa como é impossível. Para aduzir uma prova convincente disto é apenas preciso lembrar que a Primeira Causa existe sem ser efeito de uma causa; ou que, se tudo necessitasse de uma causa, ainda hoje nada existiria, porque tudo seria radicalmente contingente. Conquanto se faça uma distinção no termo "tudo o que existe" tudo ficará bem: "tudo o que existe", indistintamente tomado, não se concederá; "tudo o que existe" contingentemente, ou necessariamente, mas não por si, concede-se.
Anónimo,
Curiosamente, umas linhas mais abaixo, Pessoa escreve:
A existência de Deus é, pois, indemonstrável [experimentalmente], mas é um acto de fé racional, natural portanto – inevitável até – em qualquer homem no uso da sua plena razão.
E tanto assim é que o ateísmo anda sempre ligado a duas qualidades mentais negativas – a incapacidade de pensamento abstracto e a deficiência de imaginação racional. Por isso, nunca houve grande filósofo ou grande poeta que fosse ateu.
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Caro Hugo Dantas,
Concordo consigo. Pessoa era de facto um génio, porém tinha algumas falhas de base filosófica e teológica, como essas que apontou. E isso deve-se, na minha opinião, ao facto de Pessoa não ser cristão (ou seja católico), mas esotérico.
É preciso ter alguma cautela quando se lê Fernando Pessoa. Mas em caso de dúvida recorremo-nos do Catecismo.
Cumprimentos.
Dizem que o Fernando Pessoa era maçon. Pelo menos ele terá andado ligado às forças ocultistas...
Caro FireHead,
É sabido que Fernando Pessoa era ocultista. Porém ele nunca revelou a seita a que pertencia. Sabemos apenas que não era maçon, uma vez que o próprio disse que não era (capítulo «Associações Secretas» do livro «Da República»).
A minha suspeita é que ele fosse rosa-cruz, não só pelo próprio se afirmar «cristão esotérico», como pelos seus poemas, que deixam antever uma ligação rosa-cruz.
Cumprimentos.
No fundo a bosta é a mesma. Tanto podia ele ser da Fraternidade Rosacruciana (já havia disso em Portugal??), de ranço hereticamente nestoriano, como da Sociedade Teosófica ou da Ordem Hermética da Aurora Dourada... é tudo gnóstico. E, se é gnóstico, é do Demónio.
Abraço.
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