O Punhal dos Corcundas Nº 20 (IV)

(continuação da Parte III)


Texto

Ainda depois do reinado de El-Rei D. José muitos homens sábios foram vítimas dele. Ainda em nossos tempos vimos sofrer muitos beneméritos deste país, antes da famosa septembrizada. (Do texto se conclui que temiam ver excitados novamente os que eles chamavam antigos furores do Tribunal, e por isso o queriam abolido a ponto de que, sendo possível, queimassem os próprios edifícios, e deitassem as cinzas e ruínas ao mar).

Censura e comentário

Eis que chego ao mais fino da questão; e serei mais claro do que nunca. Perseguiu a Inquisição o Lente José Anastácio no Reinado da Senhora D. Maria I... assim foi... mas vejamos se o Tribunal procedeu justa ou injustamente. Ninguém provará que a Inquisição entendesse com aquele Professor em assuntos de Faculdade de Matemática, e debalde quererão os adeptos fazer deste homem perseguido um novo Galileu (*). Podia ele se quisesse, e os seus talentos e forças alcançassem tanto, não só igualar, mas exceder o famoso Pedro Nunes, sem que lhe pusessem o menor impedimento; José Anastácio porém excedeu-se em matérias de que não era sabedor, e nas quais não podia ser juiz; dogmatizou contra os principais mistérios da nossa Fé, e para ser mais eficaz o veneno, temperou-o com todas as graças da Poesia, e como enfeitou de lábios dourados a taça em que propinava a mortal bebida aos incautos mancebos que o atendiam. Que devia fazer nestes lances o Tribunal do S. Ofício quando reinava uma Princesa verdadeiramente religiosa, e que não cedia em piedade, e zelo de manter a pureza do Cristianismo ao próprio Soberano que fez erigir o Tribunal da Fé? Muito embora chorassem as musas, as letras, e as ciências; mas foi de absoluta necessidade reprimir os males na sua origem, e só estranhará os aliás pequenos sofrimentos de José Anastácio quem desejar segui-lo na temeridade de escrever contra a fé e bons costumes. Oxalá que o S. Ofício já bastante agrilhoado nessas, e outras semelhantes causas, pudesse então bracejar e desenvolver-se na forma que tanto convinha aos interesses da Monarquia!!! Apenas conseguiu represar nas mãos de infames depositários as virulentas, ímpias, e blasfemas cartas de um Português, que em poucas páginas recolheu todo o veneno das Cartas Persanas, Índias, Cabalísticas, etc., etc., etc. Logo porém que o dia 24 de Agosto fez soltar os ventos, e as tempestades de envolta com o Dragão Infernal que estivera sopeado mais de seiscentos anos, foram impressas neste Reino!!! As cartas de José Anastácio, venderam-se descaradamente no Porto e em Coimbra, que em Lisboa já seriam velhas, e correram como se fossem novos catecismos da mocidade Portuguesa!! Em vão protestei na Gazeta Universal contra a aparição de mais este fenómeno de impiedade; uma voz fraca, e desconhecida mal se ouvia, quando os próprios que eram obrigados a falar em voz alta, pareciam estátuas!
No que pertence aos beneméritos que compareceram no Tribunal do S. Oficio, já toda a Nação conhece admiravelmente de que laia são estes beneméritos, e acompanha-me toda no sentimento de que, assim como levaram meigas e suaves repreensões, não ficassem aí detidos e clausurados! Pois que perdíamos com isso? Teríamos vivido em paz, e não teríamos visto as proezas maçónicas. Já agora que tenho adiantado este certame, convém leva-lo ao fim, propondo, e desfazendo as objecções dos adversários do S. Ofício.

Texto

Quem será tão desumano, que não se comova dos gritos de mil e quatrocentas vítimas que foram queimadas, e de mais de vinte mil que foram infamadas neste Reino por esse Tribunal povoado de canibais e antropófagos? Somente na Bélgica foram condenadas à morte oitenta mil pessoas, quando o feroz Duque de Alba dirigia as operações do Tribunal exterminador, e quem tomar o pincel vagaroso, mas seguro, de Domenichino, e o molhar no sangue que fez derramar em Espanha esse infame Torquemada (**) fará por certo o quadro mais espantoso e abominável.

Censura e comentário

Qual é o Tribunal humano, que não tenha abusado de seus poderes? Que não tenha excedido os limites de sua competência e de jurisdição? Se fora este um motivo suficiente de sua extinção, quantos deveriam ficar em pé? Tomando porém a coisa por outro lado, quantos ladrões e homicidas terão há duzentos anos a esta parte subido à forca nas duas cidades de Lisboa e Porto? Quem folheasse os registos das sentenças capitais deste Reino acharia mais de mil e quatrocentos, e será este um argumento, por que se devam extinguir desde já os Tribunais que impuseram a pena última? Ora esses mil e quatrocentos, número este que por ventura será exagerado, foram homens relapsos, dogmatizantes, e perturbadores da ordem pública, e por isso a autoridade civil deu as mãos à eclesiástica, para que do rebanho de Jesus Cristo fossem cortadas de uma vez essas ovelhas contagiadas, que o poderiam infeccionar todo, se lhe não acudissem a tempo. Os filósofos de hoje estão muito discordantes da sabedoria cristã, e por isso nem pode haver ajuste de princípios, nem as disputas acabam felizmente. Para eles tudo é políticos e temporal, e os negócios de Fé são os últimos... Concedem facilmente que uma desatenção, uma palavra injuriosa que se diga ao Rei da terra, é punível, e de bom grado subscreverão a pena de morte, se houver esperanças de mercê, de comenda, ou de título... porque enfim querem viver só para este mundo, e talvez não admitam, nem esperem outro... mas tratando-se de injúrias públicas e atrozes feitas ao Rei dos Céus e da Terra, humanizam-se, mudam de tom, e parecem-lhe delírios de cabeças estouvadas, que não contemplam nem sabem dar desconto ao fanatismo dos seus concidadãos; e muito embora se altere o sossego público, se corrompa a mocidade, pereçam almas aos centos, e milhares delas se precipitem no Inferno, basta para esses crimes um simples aviso correccional. Não é agora do meu intento defender a severidade das medidas que tomou o Duque de Alba, nem fazer encurtar o número das vítimas que se imputam ao Cardeal Torquemada; devo porém fazer uma advertência mui essencial neste ponto. Quando os Ateus e Pedreiros Livres governam, tudo é santo e justo; façam embora centos de pavorosas cenas como a decantada S. Barthélemy, assim era necessário para o bem da sociedade, que usou dos seus direitos, cortando ou expulsando de si os membros podres que a corrompiam e danificavam; quando porém governa Carlos IX de França ou Filipe II de Espanha, muito embora os Belgas e os Huguenotes sejam notoriamente uns vassalos rebeldes, uns aleivosos conspiradores, que levantando um Estado dentro do Estado queiram e possuam lugares de segurança e praças-fortes, donde renovem a seu salvo, quando houver mais forças, a guerra civil; tudo isto são jogos de crianças a que os Reis devem mostrar uma cara de riso, e subirem com ela ao patíbulo, que lhes anuncia já sem rebuço, e lhes prepara no silêncio das trevas a orgulhosa sabedoria moderna, empunhando a trolha, cingindo a cabeça de mitra, e rodeada de esquadrias, de triângulos, e outros emblemas de suas altíssimas concepções.

(a continuar)

(*) Já que vem a talho de foice, ou corte de punhal que vem a ser o mesmo, direi que este facto da perseguição de Galileu é um dos que andam mais desfigurados na História moderna; e se alguém me saísse ao caminho, que eu levo, então lhe mostraria por documentos de irrefragável crédito que nem a Inquisição de Roma foi cruel, nem o Astrónomo foi tão inocente como se diz vulgarmente, sem exame, e sem averiguação alguma. Tenho armado uns poucos de alçapões aos sábios destas eras, mas infelizmente não saem a campo, o que não admira, porque no seu S. Martinho, no seu bom tempo constitucional, não souberam responder a quem lhes argumentava na forma senão insultando, prendendo, e desterrando.
(**) Diário de Cortes – 1º ano – nº 42 pág. 356.

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