Alfredo Pimenta |
António Sardinha sacrifica bastante à retórica; daí aquele «destemperado arrojo» que não tem pés nem cabeça.
Porque não fatigou os olhos no estudo dos documentos, tem a audácia de afirmar entonadamente que D. Afonso I e seu filho D. Sancho se intitularam «reis dos portugueses», como se não tivessem usado outros títulos, que provam que a significação dada por Sardinha àquela expressão é manifestamente errada.
Às vezes, no mesmo documento, D. Afonso I chama-se «rex portugalensium» e «rex portugalensis» (Reuter, Chanc. med. port., I, nº 198) ou «portugalensium rex» e «rex portugalis» (idem, nº 209 e 249).
Para Sardinha, em Castela, a terra pertencia ao Rei; em Portugal, não. Daí, os Reis serem, em Castela, «de Castela», e em Portugal, «dos portugueses»!
Mas os documentos desmentem-no.
D. Afonso I chama-se «urbium portugalensium dominus» (in Reuter, loc. cit., nº 15); «portugalensium patriae Rex» (ou Dominus ou Princeps) (idem, nº 49, 78, 83, 89, 93, 144, 186, 208); ou «portugalie rex» (idem, nº 103, 122, 233, 253); ou «rex portugalis» (idem, nº 151, 171, 209, 213, 219, 241, 249); ou «tocius portugalensis provincie princeps» (ou Rex) (idem, nº 12, 24, 34, 41, 51, 93, 109, 143); ou «portugalensis rex» (idem, nº 156, 159, 181, 198, 199, 243, 245, 262); ou «rex portugalensis» (idem, nº 161, 162, 210, 253 a 255, 257, 267 a 269).
António Sardinha tinha à mão os Forais publicados nos Port. Mon. Hist.; se os tivesse consultado, veria que só em dois, o de Leiria e o de Lisboa, D. Afonso I se dizia «portugalensium rex». No de Mesão Frio, diz-se «portugalis rex». E nos outros, Lousã, Freixo, Sintra, Santarém, Coimbra, Urros, Valdigem, Aregos, Marialva, e também no de Mesão Frio, intitula-se «portugalensis rex». Nos restantes, o editor não desenvolveu a abreviatura «Port», e por isso a ponho de remissa.
Quanto aos Reis de Castela serem só de Castela, e quem diz de Castela, diz também de Leão, tenho, pelo menos, nove documentos que desmentem a doutrina de Sardinha:
1º – a doação de Dezembro de 1164 (in Serrano, Cartulário de San Vicente de Oviedo, nº 278) em que D. Fernando II se diz: «ego domnus Fernandus dei gratia rex hispanorum»;
2º – a doação de 12 de Junho de 1170 (in loc. cit., nº 284) em que D. Urraca se diz: «ego Urraka dei gratia Hyspanorum regina»;
3º – a doação de 5 de Novembro de 1172 (in Serrano, Cartulário de San Pedro de Arlanza, nº 119);
4º – a doação de 20 de Janeiro de 1174 (in Indice de los docs. procedentes de los monasterios y conventos suprimidos que se conservan en el Archivo de la Real Academia de la Historia, I, pág. 6, nº 6);
5º – a confirmação do foral de Toledo, de Fevereiro de 1174 (in Muñoz y Romero, Colecion de Fueros municipales, I, pág. 380);
6º – a doação de Maio de 1174 (in Serrano, Cartulário de San Pedro de Arlanza, nº 121);
7º – a doação de 9 de Maio de 1175 (in Férotin, Recueil des Chartes de l’Abbaye de Silos, nº 65);
8º – o privilégio rodado de 18 de Março de 1177 (in Villalobos y Nieto, Docs. de la Iglesia colegial de Santa Marial a Mayor de Valladolid, I, nº 48) – todos estes seis diplomas de D. Afonso VIII, em que ele se diz: «...dei gratia yspanorum (ou hispanorum) rex»;
9º – a doação de Julho de 1175 (in Serrano, Cartulário de San Vicente de Oviedo, nº 294), em que D. Fernando II se diz: «ego Fernandus dei gratia yspanorum rex».
E também os Reis de Inglaterra se dizem «anglorum rex», e os de França, «francorum rex».
O que é curioso é que tanto os Reis de Castela como os Reis de Leão se consideram Reis «hispanorum».
É possível que me tenha escapado algum documento; mas estes são suficientes para se verificar a leviandade da afirmação de Sardinha.
Alfredo Pimenta in «A propósito de António Sardinha», 1944.
6 comentários:
Boa publicação. Obrigado.
José Reis
Só vale a pena discutir isso se lutarmos para que Portugal e os portugueses sobrevivam. O resto é 'conversa'...
José Reis,
Obrigado. Volte sempre.
Vítor Rodrigues,
Em matéria de defender Portugal, Alfredo Pimenta tem muitas provas dadas. Esta é mais uma delas.
Em relação ao assunto em questão, não há defesa de Portugal sem defesa da Verdade. E tudo aquilo que diz respeito a Portugal é importante para a defesa de Portugal. Quem deixa cair certos assuntos porque são «menos importantes» ou «não interessam para a actualidade», está a permitir que se abram brechas na muralha e a deixar terreno livre para o inimigo. Ou seja, está a trabalhar para o inimigo.
Cá está uma discussão sem nexo entre dois grandes portugueses. Não existiria Portugal sem portugueses e é lógico que o Rei de Portugal seria igualmente Rei dos portugueses. Qual o interesse da discussão em causa? Rigorosamente nenhum...
Basta constatar a moderna teoria do Estado em que a população é um dos seus três elementos juntamente com o território e o governo.
Pedro Mesquita Fernandes,
A discussão só pode ser irrelevante, e sem nexo, para quem não vê todo o alcance da questão. Seria mais justo, da sua parte, se começasse por duvidar dos motivos de tão estranha tese lançada por Sardinha, em vez de contestar quem corrige o erro e quem divulga a correcção. Não é nosso dever moral defender sempre a Verdade? Nomeadamente tratando-se de um erro público – e que lançou raízes! Ainda no outro dia vi uma pessoa defender o mesmo disparate. E não é para menos, pois até a wikipédia repete a mesma burrice.
Mas fará alguma diferença dizer «Rei de Portugal» ou «Rei dos Portugueses»? Pois a diferença está na hierarquia de valores das coisas. É óbvio que o Rei de Portugal é também Rei dos Portugueses, os nossos Reis bem o sabiam e por isso o usavam. Mas se reduzirmos a fórmula a «Rei dos Portugueses», estamos a colocar os «Portugueses» (o Povo) como a coisa de maior importância. Ou seja, não são os Portugueses que estão para Portugal, mas é Portugal que está para os Portugueses. Que democrático! Qualquer liberal diria o mesmo.
A moderna teoria do Estado é filha do iluminismo maçónico. Nem sequer cronologicamente serve de argumento, uma vez que é posterior a D. Afonso Henriques. Aqui só nos interessa a Verdade e a Tradição.
Enviar um comentário