Centenário da morte da Pastorinha Jacinta


A Jacinta tomou tanto a peito os sacrifícios pela conversão dos pecadores, que não deixava escapar ocasião alguma. Havia umas crianças, filhos de duas famílias da Moita [Redonda], que andavam pelas portas a pedir. Encontrámo-las, um dia, quando íamos com o nosso rebanho. A Jacinta, ao vê-los, disse-nos:
– Damos a nossa merenda àqueles pobrezinhos, pela conversão dos pecadores?
E correu a levar-lha. Pela tarde, disse-me que tinha fome. Havia ali algumas azinheiras e carvalhos. A bolota estava ainda bastante verde, no entanto disse-lhe que podíamos comer dela. O Francisco subiu a uma azinheira para encher os bolsos, mas a Jacinta lembrou-se que podíamos comer da dos carvalhos, para fazer o sacrifício de comer a amarga. E lá saboreámos, aquela tarde, aquele delicioso manjar! A Jacinta tomou este por um dos seus sacrifícios habituais. Colhia as bolotas dos carvalhos ou a azeitona das oliveiras.
Disse-lhe um dia:
– Jacinta, não comas isso, que amarga muito.
– Pois é por amargar que o como, para converter os pecadores.
Não foram só estes os nossos jejuns. Combinámos, sempre que encontrássemos os tais pobrezinhos, dar-lhes a nossa merenda; e as pobres crianças, contentes com a nossa esmola, procuravam encontrar-nos e esperavam-nos pelo caminho. Logo que os víamos, a Jacinta corria e levar-lhes todo o nosso sustento desse dia, com tanta satisfação, como se não lhe fizesse falta. Era, então, o nosso sustento, nesses dias: pinhões, raízes de campainhas (é uma florzinha amarela que tem na raiz uma bolinha do tamanho de uma azeitona), amoras, cogumelos e umas coisas que colhíamos na raiz dos pinheiros, que não me lembro agora como se chamam; ou fruta, se a havia perto, em alguma propriedade pertencente a nossos pais.
A Jacinta parecia insaciável na prática do sacrifício. Um dia, um vizinho ofereceu a minha mãe uma boa pastagem para o nosso rebanho; mas era bastante longe e estávamos no pino do Verão. Minha mãe aceitou o oferecimento feito com tanta generosidade e mandou-me para lá. Como havia perto uma lagoa, onde o rebanho podia ir beber, disse-me que era melhor passarmos lá a sesta, à sombra das árvores. Pelo caminho, encontrámos os nossos queridos pobrezinhos e a Jacinta correu a levar-lhes a esmola. O dia estava lindo, mas o sol era ardente; e naquela pregueira árida e seca, parecia querer abrasar tudo. A sede fazia-se sentir e não havia pinga d'água para beber! A princípio, oferecíamos o sacrifício com generosidade, pela conversão dos pecadores; mas, passada a hora do meio-dia, não se resistia.
Propus, então, aos meus companheiros, ir a um lugar, que ficava cerca, pedir uma pouca de água. Aceitaram a proposta e lá fui bater à porta de uma velhinha que, ao dar-me uma infusa com água, me deu também um bocadinho de pão que aceitei com reconhecimento e corri a distribuir com os meus companheiros. Em seguida, dei a infusa ao Francisco e disse-lhe que bebesse.
– Não quero beber – respondeu.
– Por quê?
– Quero sofrer pela conversão dos pecadores.
– Bebe tu, Jacinta!
– Também quero oferecer o sacrifício pelos pecadores!
Deitei, então, a água numa cova de uma pedra, para que a bebessem as ovelhas e fui levar a infusa à sua dona. O calor tornava-se cada vez mais intenso. As cigarras e os grilos juntavam o seu cantar ao das rãs da lagoa vizinha e faziam uma grita insuportável.
A Jacinta, debilitada pela fraqueza e pela sede, disse-me, com aquela simplicidade que lhe era habitual:
– Diz aos grilos e às rãs que se calem! Dói-me tanto a minha cabeça!
Então, o Francisco perguntou-lhe:
– Não queres sofrer isto pelos pecadores?!
A pobre criança, apertando a cabeça entre as mãozinhas, respondeu:
– Sim, quero. Deixa-as cantar.

Irmã Lúcia in «Memórias da Irmã Lúcia», 1976.

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