A modéstia e piedade d'el-Rei Dom Afonso Henriques se descobre em alguns exercícios de sua vida, pois sabemos que quando os negócios da guerra lhe davam lugar, a maior consolação que tinha era assistir nos conventos dos Religiosos e ocupar o tempo na meditação das coisas sagradas. Algumas vezes sabemos que se retirou aos mosteiros de Alcobaça e São João de Tarouca, como em seus lugares deixamos advertido. E ordinariamente quando estava em Coimbra acompanhava os Religiosos de Santa Cruz, e com uma sobrepeliz vestida, assistia no Coro aos divinos ofícios, como se sabe de memórias antigas daquela casa. De tudo o sobredito, se pode coligir que foi el-Rei Dom Afonso Henriques não só um dos ínclitos Reis da Cristandade em guerra, e paz igualmente claríssimo, mas varão admirável consumado em todo o género de virtudes.
Alguns indícios há de bem-aventurança de sua alma, os quais proporei como os alcancei de memórias antigas. Em um livro de mão do Mosteiro de Alcobaça, em que se trata de São Martinho, e se contém algumas coisas escritas por Gregório Turonense, Severo Sulpício e outros autores, há estas palavras referidas a el-Rei Dom Afonso Henriques:
Este bom Rei Dom Afonso, a noite em que se filhou Ceuta aos Pagãos pelo honrado Senhor Rei Dom João, o Primeiro, apareceu no Convento de Santa Cruz de Coimbra, todo ornado, sendo os Frades Cónegos em sembra no Coro às Matinas; a lhe disse que ele por querer de Deus fora com Dom Sancho, seu filho, ajudar a cobrar Ceuta aos Mouros, a logo transportaleceu que não foi então mais visto, quedando costeiros todos, pasmados do que haviam visto.
Também em memórias de Santa Cruz se contam alguns aparecimentos deste Rei em defesa daquela casa: Uma só apontarei, feita ao próprio Rei Dom João I. Tinha ele mandado a um seu oficial que todas as terras de seus Reinos pertencentes aos reguengos Reais, ainda que estivessem sujeitas às Igrejas, ou pessoas particulares, se aplicasse à Coroa até se informar do modo e causa porque foram desmembradas. Com esta diligência se tomou ao Mosteiro de Santa Cruz a quinta da Atamuia, que é em termo de Alenquer. Apareceu em sonhos el-Rei Dom Afonso Henriques a el-Rei Dom João, e com palavras graves lhe disse que restituísse ao seu Mosteiro de Santa Cruz a quinta que ele lhe dotara quando vivia, e soubesse como tinha tomado debaixo de sua protecção as coisas daquele Mosteiro. Acordou el-Rei Dom João, e contando à gente de sua casa o que lhe acontecera, mandou logo restituir a Santa Cruz a quinta que lhe fora tomada.
Destes e de outros casos semelhantes se fica entendendo que vive el-Rei Dom Afonso glorioso na eterna bem-aventurança, pois do lugar dos mortos não era conveniente que viesse exercitar estes actos de esforço e religiosa piedade. Bem entendiam isto os Religiosos antigos de Alcobaça, pois não só ordenaram se fizessem os ofícios e celebrassem Missas por este Rei com ornamentos de festa, como ainda hoje se usa, mas também lhe compuseram uma comemoração como de bem-aventurado. Em o Mosteiro de Lorvão vi um livro de pequena leitura escrito em pergaminho, em o qual está a comemoração que digo d'el-Rei Dom Afonso Henriques. E outra quase do mesmo teor, ainda que mais acrescentada nas palavras, achei em a livraria de Alcobaça, em o fim do livro da vida de São Martinho, em o qual há muitas coisas tocantes a São Tiago e ao Imperador Carlos Magno. Diz a comemoração deste modo:
Frei António Brandão in «Terceira parte da Monarquia Lusitana: Que contém a História de Portugal desde o Conde Dom Henrique, até todo o reinado d'el-Rei Dom Afonso Henriques», 1632.
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