A mistificação do Voto


Quem governa, no Povo soberano? O voto. Quem decide sobre a Guerra e sobre a Paz? O voto. Quem resolve os problemas da Instrução, da Higiene, da Defesa nacional, do Fomento, das Colónias, da Ordem, da Moral? O voto. Quem julga o Passado do Povo? O voto. Quem prepara o Futuro do Povo? O voto. Mas quem é o voto? O voto é a mistificação legal. Quem governa, no Povo soberano, é a mistificação.
Havia, não sei onde, um candidato eleitoral que ficou muito surpreendido com o resultado da eleição. E tendo-o encontrado alguém a caminho do cemitério da sua terra, na tarde da sua derrota, perguntou o que ia fazer para aquelas bandas isoladas e desoladas.
O candidato respondeu: «Vou perguntar aos mortos da minha terra que mal lhes fiz eu para que votassem todos de chapa contra mim».
Aqui, no nosso País, em que o Povo é soberaníssimo, há assembleias eleitorais em que votam todos os eleitores, não tendo comparecido um. Em Paris, nas últimas eleições constatou-se que grande número de eleitores não residiam nas moradas indicadas, e ninguém sabia deles. O resultado foi como se toda a gente os conhecesse na intimidade. E perante o resultado das eleições, já se lê na mais ponderada e ortodoxa imprensa democrata, que o Povo soberano não queria o que os vitoriosos estão fazendo. Essa é boa! Se a Maioria, se o Voto, se o Número pertence à fauna demagoga – que têm os democratas que discutir, que observar, que contrapor? Nada. O Voto, o Número, a Maioria, numa palavra, a Democracia, decidiu. Logo, aos vencidos cumpre obedecer.
Mistificação? Sim, para nós, a quem nada repugna tanto, como ver o nosso pensamento dominado por dois votos, como ver a nossa cultura vencida por dois votos, como ver a nossa competência inutilizada por dois votos. Mas para os democratas, para os partidários do Sufrágio, do Voto, do Número, para os democratas – não. Esses devem sujeitar-se, submeter-se às conclusões lógicas dos seus princípios. Ou o sufrágio só é bom, quando é a meu favor? O voto só é livre, quando votam em mim? O Número só é legítimo, quando está comigo?
O Povo soberano! O que fizeram do Povo, quando o proclamaram Soberano! O que era uma força útil foi transformado em degrau para todos os aventureiros, para todos os traficantes, para todos os comediantes sem escrúpulos e sem vergonha.
Do Povo útil, fizeram um esfregão em que todas as torpezas se limparam. Do Povo útil, conduzido por uma vontade consciente e responsável, fizeram um bando dirigido pelo capricho anónimo e irresponsável.

Alfredo Pimenta in jornal «A Época», 15 de Junho de 1924.


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