Celibato – Vocábulo coberto dos maiores impropérios pela moderna Filosofia. Segundo os Filósofos, é contrário às Leis da Natureza, ao bem da Sociedade, e aos deveres de Cidadão, não obstante que o Republicanismo Filosófico eleve não pequenas obrigações aos não casados. Entre os Pais de Família não podia ele achar, e efectivamente não achou muitos Propagandistas, nem sequazes: porque não é mui fácil, que um Pai sacrifique seus filhos à louca e momentânea satisfação de fazer figura numa Cadeira Legislativa, Directorial e Presidencial; nem esquecer-se de todo das propriedades que possui, por mais que veja, que não pôde já com segurança social transmiti-las em herança: o amor de Pai o força a amar a justiça, a ordem, a segurança social, a Religião, e os costumes, e por conseguinte detesta uma Democracia, que aniquila tudo quanto é bom e calca aos pés ainda o mais Santo e Justo. É verdade que uma Filosofia ímpia, e brutal, que apaga todos os sentimentos mais doces da Natureza, que exalça, e talvez celebra os mesmos parricídios, é capaz de exterminar dos mesmos corações ainda o amor paterno: porém também é certo, que não triunfa facilmente de um coração, em que a Religião, a razão, e o dever se acham unidos a uma inclinação fortíssima da Natureza. Pelo contrário, o Mancebo celibatário, que nem se ocupa, nem pensa mais que em si mesmo, vê com a maior indiferença perecer todo o Mundo, com tanto que sacie sua ambição, suas paixões, e sua luxúria. Poder-se-á negar que os mais fanáticos, e perversos Republicanos são aqueles Celibatões, que nem tem mulher legítima, nem filhos legítimos?! Os Pais de Família, que com sentimentos não fingidos se hão reunido à banda Democrática, são pela maior parte, ou beberrões, e loucos desesperados, que não podem piorar de sorte, ou algum tal e qual delirante por irreligião e cobiça. Porém os maiores luminares Filosóficos não são aqueles, que ao mesmo passo que vomitam fel e veneno contra o Celibato, passam toda a sua vida sem se casar legitimamente?
Para explicar este mistério Filosófico, convém distinguir duas espécies de Celibato. Um bom, religioso e racional; e outro libertino. O primeiro é pintado pelos Filósofos com as negras cores de anti-natural, anti-social, e danosíssimo por extremo. O segundo é mui digno de todo o Filosofo, e sobretudo conforme ao Direito Filosófico de liberdade.
Quando se trata do Celibato Eclesiástico, que é o justo e honesto, e que se professa como máxima de perfeição Religiosa, para servir melhor à Sociedade, e para vantagem das próprias famílias, pois com a maior herança, que se deixa aos irmãos, e dote às irmãs, se promovem mais os Matrimónios, então, segundo eles, o Celibato é a ruina da Sobriedade; a causa total e parcial da despovoação; e os defeitos, e faltas de alguns poucos Eclesiásticos se ponderam, e aumentam de tal modo, que não parece, senão que o dito Celibato é o princípio e a origem de toda a relaxação e de todos os escândalos, que há e há-de haver no Mundo.
Valha-me Deus! Pois o Celibato é tão mau como tudo isso?! Eu não sei que época é esta em que vivemos, que não tem dúvida de chamar negro ao que é branco, e branco ao que é negro! Digo isto: porque ou o Celibato consiste em não se casar e não ter filhos, ou em abster-se de uma e outra cousa, para se dedicar mais livremente a Deus. Se no primeiro, como tem cara os Filósofos, para lançar era rosto aos Sacerdotes o não se casarem, quando quase todos eles vivem à vaga Vénus sem nem se quer pensar em cousa, que cheire a casamento? Se, enquanto há na Republica mil Religiosos que não se casam, há cem mil Seculares que vivem solteirões e que podiam, e deviam, por justos motivos, casar-se; para que tanto estrepito e alvoroto sobre o Celibato dos mil Eclesiásticos, e tanto silêncio sobre o dos cem mil Seculares? E se consiste no segundo, porque não é isto, e não o Celibato in genere, que se condena nos Sacerdotes? Sejamos sinceros, e justos; casem-se primeiro todos os Seculares, que se acham em estado de poder faze-lo, e depois falaremos sobre o casamento dos Sacerdotes. Esta lide não se compõe com declamações, chufas e descaramentos, mas sim metendo mãos à obra. Com que, Senhores Filósofos anti-Celibatários, vamos apertando a mão nos casamentos, e tenham isto conhecido, quando queiram começar a reforma.
Outra coisa noto eu em Vossas mercês, e é: que devem ver como os Gigantes, pois, a não ser assim, não podiam deixar de conhecer o Celibato de tantos Seculares, que em poucos dias de casados abandonam a infeliz mulher, para se entregarem à mais infame, torpe, e infrutuosa leviandade. Contra estes, Senhores embusteiros, contra estes é que Vossas mercês deviam aguçar o seu zelo. Destruam-se tais Celibatos Matrimoniais; persigam-se seus Professores a fogo e a sangue; casem-se todos os Seculares, que podem, e devem casar-se; e certamente se verá a República muito mais embaraçada em prover de subsistências à Povoação, do que em aumentá-la. Verão que então se julgará uma felicidade, o não se casarem os Sacerdotes.
Os Filósofos Deístas, ou Ateus, não perdem a ocasião, quando se trata de População, de empregar toda a sua eloquência contra o Celibato Eclesiástico. Já se vê que uma das principais obrigações de todo o verdadeiro filosofante é, o denegrir por quantos modos possa a Religião, e representá-la como contraria ao bem da Sociedade. Porém tão cuidadosos e diligentes se mostram nisto, quanto preguiçosos e torpes em descobrir-nos com franqueza as verdadeiras, e legítimas causas, por que em tantas partes escasseia a População. Mas já que eles constantes em sua boa-fé se fazem desentendidos, e como esquecidos, nós lhas recordaremos.
A guerra actual, que só a ímpia Filosofia, e seu digno filho o Republicanismo tem atiçado, não é uma das verdadeiras causas da depopulação? Quantos milhões de homens, todos na flor da idade, e quase todos daquela População útil à Sociedade, como são os Artistas e Lavradores, não tem ela a esta hora sacrificado ao seu furor? Quantos milhões de milhões, que deles espera vão a existência nos Séculos futuros, não ficaram em o nada? São acaso, Senhores Antropógrafos, esses clamores, por que os Sacerdotes se casem, para ver se com o sangue de seus filhos podeis apagar a raivosa sede de sangue, que com a de tantos milhões de Seculares ainda não pudestes mitigar? Que dor, que desgraça tão grande para esses corações filantrópicos, não é o terem-se sacrificado numa batalha dous mil homens, quando podiam ter sido vinte e cinco mil! Deveis sem embargo consolar-vos, pois se até agora não há filhos de Sacerdotes, e Religiosos, que levar ao matadouro, tendes Religiosos, e Sacerdotes, a quem não vos descuidais de levar.
E o luxo, que tantos defensores tem entre os Filósofos, não é um dos maiores impedimentos para a População? É necessário ser pouco menos que um Creso, para poder nestes tempos pensar em mulher. Uma soma, que bastaria para comprar hum terreno capaz de manter uma família, não chega para os enfeites, vestidos, jóias, relógios, etc., etc., que o império da moda, e o uso tem estabelecido para lançar às costas de uma mulher! E se isto é verdade, que razão há, ou que justiça, para pretender que mancebos honrados, e circunspectos devam arruinar-se com o Matrimónio? E em tais circunstâncias não é a libertinagem uma consequência pouco menos que necessária? Vamos a outra coisa.
A falta de Religião, que tão estendida se acha em nossos dias, (graças aos Missionários e Propagandistas Filosóficos) não é outro dos principais motivos da depopulação? Por que causa se não casa aquele peralvilho libertino, senão porque passa uma vida estragada e licenciosa, ocupada toda em armar laços e entregas às mulheres dos outros, senão porque não tem Religião? Porque teme o mancebo honesto e religioso até de pensar em casar-se no meio de uma corrupção tão universal, senão porque não há tálamo seguro, a que não manche a irreligiosa libertinagem?
O remédio pois para o aumento da População não deve buscar-se na abolição do Celibato Eclesiástico, o qual indirectamente a promove de muitos modos; mas sim em atalhar o luxo, a irreligião, e a libertinagem. E já que tanto furor e raiva os devora pelo Celibato, porque não o empregam contra o Celibato Filosófico e desonesto, que é quem oferece um vastíssimo campo? Senhores Libertinos, se Vossas Mercês não tem alentos para deslisar-se do impuro comércio com certa gentinha, e viverem castos, deixem ao menos que outros o façam; e não sejam como o diabo, que estabelece a sua felicidade em arrastar consigo à perdição toda a linhagem humana. Deixem que um Religioso com sua honestidade e desinteresse, e à custa de sua própria mortificação, renunciando a porção de herança que lhe poderia pertencer, deixe suas irmãs em estado de acharem maridos, e a seus irmãos em circunstâncias de poderem buscar mulheres. Deixem que entre tantos que nem pensam, nem podem pensar noutros filhos que nos seus, hajam Bispos, Párocos, Frades, e Sacerdotes, que pensem nos alheios, e empreguem seus ternos e amorosos cuidados nos desgraçados filhos da Sociedade. Deixem que enquanto esse espantoso número de malvados (entre os quais se acham os inimigos do Celibato) vivem sepultados no charco hediondo e abominável da leviandade e da impureza, hajam ao menos Religiosos, que com suas mortificações e penitências, aplaquem a justa indignação do Céu, e no meio da solidão levantem suas inocentes mãos, e seus lábios puríssimos, para que não venham sobre eles o fogo e o enxofre, que já outrora caíram sobre os impuros habitantes de Sodoma e Gomorra.
Desde muitos tempos, que os Políticos Liberais se tem proposto como um objecto de grandeza, e esplendor nacional a grande População; e nenhuma Nação tem querido com mais afinco seguir estes princípios como a Inglaterra, e por isso para eles o Celibato é um objecto de ódio; (prescindindo de outras muitas razões) mas julgámos ter chegado à época de conhecerem todos estes Senhores quanto é errada esta Política. Quando a Inglaterra Católica respeitava o Celibato, aconteceu por ventura que o Governo se visse na dura necessidade de sustentar tantos milhares de pobres?! Viu-se por ventura nesses tempos uma multiplicidade tão horrorosa de incendiários, que tem sacrificado ao seu furor, e condenado às chamas Edifícios, e Estabelecimentos, que custarão milhões de libras esterlinas?! E em que País do Mundo acontece que morra gente, e muita gente de fome, e de frio corno acontece naquele País? Eis-aqui pois o resultado da grande População. E se um dia acontecer (o que não só é possível, mas até já vai em caminho) que a Inglaterra perde a sua influência na Europa, e que esta lhe fecha as portas, não querendo as suas manufacturas, o que há-de acontecer a esta Nação tão populosa? Onde buscarão o alimento tantos milhares de Artistas, que tecem panos, e pescam bacalhau para vender aos Portugueses?! Há-de lhes acontecer, o que anunciou Napoleão, hão-de morrer de fome deitados sobre os fardos das fazendas? Talvez já a esta hora o maior embaraço daquele Governo será o grande excesso de População, a que mui de propósito se tem elevado aquele Povo! Se um dia chega a quebrar-se aquele freio, que contém os Ingleses, será a sua Revolução mais espantosa de quantas tem aparecido no Mundo! E se acontecer que a Península pouco satisfeita da má-fé, que a seu respeito se tem usado, der de mão a certos Tratados feitos no meio de uma perturbação invasora, que já durão há mais de vinte anos, e de que não há exemplo de igual conveniência exclusiva para a Grã-Bretanha, e aceder incertas Propostas mais vantajosas ao nosso Comércio, que outras Nações oferecem, ficará, segundo a sua própria confissão, um milhão de homens, que à custa da nossa indolência se sustentam, morrendo de fome! Este será então um castigo pela injusta perseguição feita aos Celibatários Eclesiásticos.
Muitas ideias acessórias, ao que deixámos escrito, se nos despertavam, mas... deixemos que rompa melhor a Aurora, que já começa de apontar no Horizonte Europeu; e então terão lugar em algum outro Artigo deste Vocabulário.
D. Frei Fortunato de São Boaventura in «Novo Vocabulário Filosófico-Democrático, indispensável para todos os que desejem entender a nova língua revolucionária», Nº 7, 1832.
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