Irmandade da Misericórdia


Em todas as Cidades e Vilas de Portugal há Irmandades deste nome. Servem de dar sepultura aos defuntos e aos pobres, sem interesse algum; sustentam pessoas pobres, bem procedidas; casam e dotam órfãs, negoceiam as causas dos presos desamparados e fazem com suma edificação muitas outras obras pias. Estas santas Irmandades há só em Portugal e não em outra parte de Espanha. Bem diz delas o Mestre Gil Gonçalves de Ávila, Grandezas de Madrid, liv. 4, titulo del Consejo de Portugal: Que es la mayor cosa que hoy se conoce en la Cristiandad. No ano de 1498, das relíquias da antiga Irmandade da Piedade, assentada em uma das Capelas da Claustra da Sé de Lisboa, com a direcção e zelo do venerável Padre Fr. Miguel de Contreiras, Religioso da Ordem da Santíssima Trindade, Confessor d'El-Rei D. João II, se levantou em Lisboa a piíssima e nobilíssima Irmandade da Misericórdia, livre de qualquer outra jurisdicção e favorecida de muitas graças, privilégios e isenções, que lhe concederam os Sumos Pontífices. Para a fábrica do Templo, que consta de três naves, todas de pedraria, concorreu com grandes esmolas El-Rei D. Manuel, que quis ser Irmão e Protector da dita Irmandade. No ano de 1534, reinando já El-Rei D. João III, se passou da Sé à sua nova casa em que a vemos, a qual consta de um nobre Recolhimento para donzelas órfãs e um Hospital para entrevados pobres, casas de despacho e cartórios, com outras muitas oficinas; e hoje de outro Recolhimento magnífico, acrescentado para quarenta donzelas órfãs e com dotes muito bons para casarem. Compõe-se a Irmandade de seiscentos e vinte Irmãos, trezentos nobres e trezentos mecânicos, e vinte letrados; uns e outros provam limpeza para serem nela admitidos. É governada por um Provedor (que sempre é um dos primeiros Fidalgos da Corte), um Escrivão, um Tesoureiro, dois Conselheiros, e seis Irmãos nobres e outros seis mecânicos. Tem sessenta Capelães, que rezam em coro as Horas Canónicas; e tem a seu cargo a administração do Hospital Real de todos os Santos. Chama-se esta Irmandade de Misericórdia, porque nas sete obras de Misericórdia se exercitam os Irmãos dela com grande caridade e dispêndio, parte de dotações dos Reis, Rainhas e Infantes de Portugal, e de pessoas devotas, que importam em cada ano perto de cem mil cruzados. Misericordiae sacrae Sodalitas, atis. Fem. Na obra do P. António Vasconcelos, intitulada Descriptio Regni Lusitanici, pág. 56, acharás um belo discurso das excelências desta Irmandade.

Pe. D. Rafael Bluteau in «Vocabulário Português e Latino», Tomo V, 1716.

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