Caso de um assédio republicano ao Padre Cruz


«Uma vez em Alfama...»
E o Padre Cruz não nos deixou acabar a frase.
«É uma nuvem, dolorosamente negra, na paisagem da minha vida! Já lá vão tantos anos. A República chegara, num alvoroço. Vivia-se a hora trágica da indecisão. Nas ruas da cidade, numa esquina, do escuro de um portal, a cilada, o atentado, espreitavam sinistramente.
«Eu vinha dos lados da Sé. Nunca deixei de vir à rua – mesmo quando as bombas rebentavam à porta das igrejas. Meti ali ao coração de Alfama – ia ver um doente, coitadinho. Levava-lhe qualquer coisa... Nisto, oiço uma gritaria. Eu não percebia bem. Era de noite e as luzes estavam apagadas. A algazarra avizinhou-se e, em alta grita, ecoou sonora esta sentença: Mata-se o padre! Mata-se o padre!
«O resto – diz o Padre Cruz, com a voz ainda trémula da emoção – toda a gente sabe... e não tem importância!»
O leitor que se não recorde, deve querer saber. Por isso contamos esse episódio do 14 de Maio [de 1915]. A turba cresceu. Havia furor – o ódio à Igreja era tremendo. Faias gingando, ébrios, abeiraram-se do Padre Cruz. Fizeram-lhe um cerco. Mas nenhum, dominado por aquele olhar de doçura, se resolvia a tocar-lhe. Padre Cruz, no meio deles, sereno, esperava com resignação a hora do seu sacrifício. Neste entretanto, um mais afeito, gritou: «Estamos a adorá-lo!?». A turba animou-se, pareceu despertar de ódio. Passaram, neste momento, uns marinheiros, de espingarda, na busca pelos bairros suspeitos. Viram a aglomeração, chegaram-se mais ao pé, mais ainda, até descobrirem o rosto do Padre. E logo gritaram: «Alto! É o Padre Cruz!»
Então os ébrios, debaixo da cegueira do álcool, tiveram um «Ah!» de espanto.
E mesmo ali pediram perdão – alguns a chorar. Todos o conheciam [da cadeia] do Limoeiro!

Fonte: «Vida Mundial Ilustrada: Semanário Gráfico de Actualidades», Ano II, Nº 56, 11 de Junho de 1942.

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