O desmembramento da Monarquia (II)



Nos últimos meses do ano 1820, quando não saiam das nossas prensas senão elogios aos rebeldes e imprecações ao Governo legítimo; quando se não tratava senão de caluniar e fazer odioso esse mesmo Governo, imputando-lhe tudo o que era mau, e até aquelas mesmas infelicidades que ele com forças mais que ordinárias trabalhava por desviar da nação, mas que eram inevitáveis, como arrojadas sobre nós pelo turbilhão dos acontecimentos públicos; eu escrevi em sentido bem diverso a minha Memória sobre os meios de melhorar a indústria, de que distribui gratuitamente mais de metade da edição. Procurei reconduzir os efeitos às suas causas, os factos à sua verdadeira origem, as coisas ao seu lugar, e expus com franqueza os meus pensamentos sobre os meios de melhorar a sorte da nação, que consiste em edificar e reparar, e não em destruir e desbaratar. Porém Obras desta natureza não eram do gosto daquele tempo; e serviam somente de excitar o ódio contra os seus autores.
Vendo que o grande número, deslumbrado com promessas lisonjeiras, corria cego após de vãs quimeras, sem advertir nos perigos que estavam eminentes, procurei excitar a atenção das classes industriosas sobre os seus verdadeiros interesses. Não era possível deixar de prever a separação do Brasil e de procurar evitar as suas consequências. Tratando pois do comércio, eu dediquei a este ponto algumas páginas daquele opúsculo. «O primeiro objecto que se me apresenta (disse eu na pág. 87) é o comércio do Brasil. Com a abertura dos portos deste imenso país às nações estrangeiras perdemos o direito exclusivo de prover os seus habitantes das mercancias da Europa, e deixando Portugal de ser o entreposto dos géneros coloniais, que daqui se distribuíam para os lugares do seu consumo, só esta causa era bastante, independentemente das mais que com ela concorreram, para produzir uma revolução completa no nosso comércio e o transtorno geral das nossas antigas relações. Daqui vem os principais clamores dos nossos negociantes, porque é donde procedem as maiores perdas que sofremos em quase todas as praças com que comerciamos. Nesta nova ordem de coisas compete ao Soberano (nunca lhe neguei este nome, ainda que debaixo do jugo da facção) procurar novos laços para unir Portugal e o Brasil; porém os nossos comerciantes desenganando-se de que o sistema colonial não pode mais voltar, devem também ir alongando as vistas pela extensão do globo, para abrirem novos canais às suas especulações: Jam tempus agit res. E devem ambos os países respeitar mutuamente os vínculos do sangue, de interesse, e de reconhecimento que os ligam para permanecerem firmes na sua união.
Tem o Brasil todas proporções para vir a ser com o andar dos tempos um grande império; mas por ora é um país novo, sem fábricas, e com uma agricultura limitada, precisa dos socorros da Mãe Pátria tanto na paz como na guerra, sob pena de ficar em uma eterna infância, ou ser esmagado pelo primeiro ocupante. Olhe para os vastos territórios da América Espanhola que o rodeiam e veja neles o seu retrato. Deve além disso lembrar-se de que a Mãe Pátria lhe deu a existência.
Por outra parte é necessário que Portugal conheça as vantagens que ainda tira do Brasil»… Aqui me voltei para os nossos comerciantes, agricultores e artistas, e por meio de várias reflexões e cálculos estatísticos procurei convencê-los do muito que ainda interessava a Portugal a conservação do Brasil, insistindo principalmente nos seguintes pontos: Os produtos de um capital de 44 milhões de cruzados, que se empregavam no comércio entre os dois países; as negociações da Ásia, que quase todas se faziam pelo intermédio do Brasil; o comércio de reexportação dos géneros coloniais para países estrangeiros; o consumo que se fazia no Brasil das manufacturas das nossas fábricas, que importava em alguns milhões de cruzados por ano e de alguns dos produtos da agricultura de Portugal, e principalmente dos nossos vinhos, que excedia a 20.000 pipas por ano nos tempos imediatos à revolução de 1820, em que este consumo se tinha aumentado como se mostra dos registros públicos, apesar das sinistras vozes que corriam em contrário; porque para se fazer odiosa a administração pública em todos os seus ramos, tudo se procurava exagerar e desacreditar.
Demonstradas assim as grandes vantagens reciprocas que resulta vão aos dons países da ma união, e que agora se conhecerão melhor pela sua falta, eu continuei (pág. 91): «O Brasil, comerciando livre, crescerá sem dúvida em prosperidade, e quanto mais crescer, mais vinho e manufacturas consumirá, e maiores vantagens oferecerá a Portugal; com tanto que os dois países permaneçam ligados entre si por meio de laços recíprocos de um Governo comum, justo e sábio, que atenda com igualdade as suas vistas protectoras sobre todas as partes do império. É assim que o Reino unido poderá ainda operar os grandes desenvolvimentos, para que a natureza o convida, e o pavilhão nacional, discorrendo com dignidade por todos os mares, reconquistar a parte que nos pertence no comércio do mundo. Se pelo contrario viesse a faltar-lhe o centro de união, desorganizado o corpo da Monarquia, cada um dos seus membros perderia todo o vigor, recebendo como massa inerte as impressões que quisessem dar-lhe, até chegar o momento em que desbaratada a herança de nossos avós, o nome Português desapareceria como o fumo, confundido com o de alguma nação mais poderosa».
Estas últimas palavras não foram escritas ao acaso. Incerta ainda a facção do resultado que teriam as suas maquinações no Brasil, agitavam-se várias opiniões em seus clubs sobre a direcção que se daria aos negócios de Portugal, e segundo o que transpirava no público, prevalecia muito naquele tempo a de se unir este reino á Espanha, provavelmente debaixo de uma forma republicana, que é o ponto a que se dirigem as revoluções populares. Seguem-se no meu opúsculo alguns §§ em que expus os meus pensamentos sobre os novos laços de união reciproca entre Portugal e o Brasil: tudo inútil no estado actual. Os meus vaticínios ou não foram lidos, ou tiveram a sorte dos vaticínios da infeliz Cassandra, a quem, segundo a fábula, os Deuses concederão o conhecimento do futuro, porém determinaram que não fosse acreditada.

José Acúrsio das Neves in «Cartas de um Português aos seus Concidadãos sobre diferentes objectos de utilidade geral e individual», Carta XII, 1823.

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