IV
Juntaram-se estes trinta e seis cavalheiros, para aquilo que o leitor viu.
Nenhum deles teve a coragem de vir sozinho, e vá de juntarem-se em magote, os trinta e seis.
Nenhum deles se sentia com autoridade bastante para se fazer ouvir ou
acreditar; e vá de se juntarem em turba, os trinta e seis.
Mas a Quantidade não cria a Qualidade; o Número não é fonte de valor – e serve apenas para se diluírem responsabilidades. E assim, se a cada um dos
trinta e seis lhe escasseava o ânimo para o insulto, não ficaram mais animosos
os trinta e seis, por virem em manada; porque o que lhes parece que seja ânimo
não passa de manifesta fraqueza. E se nenhum deles se sentia com autoridade
para a Declaração, não é por virem em ramilhete que a possuem.
Depois do que fizeram, dessa vergonha sem-nome de se reunirem em hoste ou
mesnada, para assaltarem um homem isolado, vocês perderam qualquer sombra de
autoridade moral seja para o que for.
Um homem desonra-se pelos seus actos, pelas suas palavras, pelas suas
atitudes. Não é porque um fulano ou trinta e seis fulanos o proclamam pecador,
que esse homem peca.
Pode um de vocês, ou podem vocês todos proclamar criminoso um homem, que se
ele estiver inocente, inocente ficará.
E vice-versa. E pode um de vocês e podem vocês todos proclamar o António
Sardinha intangível e tabu, divino e taumaturgo, que se ele for de barro e
fanado, fanado e de barro continuará a ser.
Mas, em qualquer hipótese, poderem, vocês, julgar-me? Terem, vocês,
autoridade moral para me julgar?!
Vocês!
Primeiro, juntarem-se trinta e seis para enxovalhar um homem sozinho, é uma
coisa miserável, de que, graças a Deus, não há exemplo.
Depois, entrarem na onda nove pessoas com quem estava de relações cortadas
é escândalo maior ainda. Onde se viu que alguém que está de relações cortadas
com outrem se bandeie com terceiros para lhe apedrejar as vidraças ou a honra?
Pois, aqui, não houve uma dessa força: houve nove!
Ao que se desceu!
Ora saiba-se isto.
Um desses nove, o arauto da tropa fandanga, e redactor da prosa repugnante,
aqui há anos, esteve preso por amor daquele que Sardinha acusara de gastar a
seu talante, dinheiro que não lhe pertencia. Pelo mesmo motivo, fora preso
igualmente um querido amigo meu.
Quando soou a circunstância única de ser imediatamente eficiente o meu
esforço para restituir este meu amigo à sua vida livre, não a deixei escapar, e
empenhei-me a fundo. Reparei, então, em que também estava preso o outro com
quem havia anos já eu cortara as relações.
Não hesitei. O meu trabalho abrangeu os dois; eram dois escritores; pedi
pelos dois, e os dois vieram, ao mesmo tempo, para a rua.
Compare-se o meu procedimento com o desse tipo; eu, de relações cortadas
com ele, intervenho a seu favor, ou se se prefere, não o excluo da minha
intervenção; ele, de relações cortadas comigo, não treme, ao redigir a prosa
indigna, o esguicho nauseabundo, a injúria reles que pretende atingir-me!
Mas, francamente, vocês, ó trinta e seis heróis da Declaração, vocês
tomaram-se a sério? Vocês supõem que me fizeram algum mal, me causaram arrelia,
ou me tiraram o sono, ou me desviaram do meu trabalho, quando lhes li a
sentença?
Vocês estão matias de todo!
O vosso António Sardinha – e era o vosso António Sardinha! – acusou a Senhora Infanta D. Aldegundes de ter atraiçoado os monárquicos portugueses. E vocês acreditaram?
Acreditassem ou não – o que é certo é que Sua Alteza Real não ficou
diminuída perante o conceito de ninguém, e a calúnia não passou do caluniador.
O vosso António Sardinha – e era o vosso António Sardinha! – acusou Paiva
Couceiro de gastar, como lhe apeteceu, dinheiro que não lhe pertencia. Isto é
horrível.
Mas vocês ligaram tanto crédito à acusação, como eu. Vocês e toda a gente.
E a calúnia ficou com o caluniador.
Dar-se-á o caso de vocês se considerarem superiores ao Sardinha, ou mais
dignos de crédito do que ele, ou mais limpos em juízos do que ele, querendo
convencer-nos de que as suas apreciações são moeda falsa, e só as vossas têm a
liga leal?
Deixem-se disso!
A vossa Declaração ninguém a toma a sério. Poderá, amanhã, ser invocada, no
fragor de polémicas, ou com intuitos de propaganda. Nenhum homem de honra e de
boa-fé a subscreverá.
Ninguém a toma a sério. Nem vocês!
Julgarem-me, vocês, a mim!
Vocês, entre os quais há um que ainda ontem me procurava para se queixar de
que caminhávamos para uma Monarquia de Banksters
que nos desonraria a todos, e no dia seguinte, vi de braço dado com quem ele
acusava de o levar a tão fúnebre prognóstico?
Vocês, entre os quais há um que ainda ontem me procurava para comentar, com
palavras de fel e de vitríolo, certas circunstâncias adstritas ao colar da
Torre e Espada que cai sobre o peito do Lugar Tenente do Rei?
Vocês, que ainda ontem promoviam golpes de estado contra os supremos
organismos dirigentes da Causa Monárquica
e, posto o jogo a descoberto, se ficavam, mudos e quedos, como se nada se
tivesse passado?
Vocês entre os quais há um que ainda ontem, diante dum artigo de serviço ao
Rei, escrito por mim, me gritava ao telefone: «este jornal não é dos monárquicos, nem da Causa Monárquica, mas unicamente meu; e eu não sou o meu
Pai...; porque não preciso da Causa Monárquica para nada!», e, no dia seguinte, corria a aceitar, na mesma Causa, o lugar de anódino para que, por
sugestão exclusivamente minha, era convidado?
Vocês, entre os quais há um que ainda ontem me procurava, quando me supunha
em transe de hostilidade, para me revelar que, sob pseudónimo cauteloso, tinha
tentado ajustar à figura de Miguel de Vasconcelos – para, no dia seguinte, se
fingir cooperador duma política de apoio leal e sincero ao mesmo Chefe do
Governo?
Vocês, entre os quais há um que ainda ontem comentava as últimas determinações régias, chamando-lhes doutorescamente «certidão de óbito da Monarquia»?
Vocês, entre os quais há um que açambarca múltiplas posições rendosas, sem
tempo nem vagar para honradamente as desempenhar e ontem era alvo de chacotas
acerbas por amor disso, por parte de alguns íntegros, e hoje se encontra entre
os seus chacoteadores, enquadrado no grupo dos trinta e seis?
Vocês, entre os quais há um que ainda ontem, chamando-me seu «querido amigo», me agradecia os meus
dois opúsculos sobre o António Sardinha e Paiva Couceiro, embora não gostasse
deles, do primeiro, por «excessivo e
injusto», pedindo-me que desculpasse «esta
franqueza», mas «a amizade a isso obriga», e, dizendo-se meu amigo e admirador,
muito obrigado» – meia dúzia de dias depois se mancomuna com torpes
inimigos meus, e assina a Declaração ignóbil?!
Vocês, entre os quais há um que, encontrando-se no estrangeiro, quando
Sardinha morreu, teve um comentário tão grave, que eu nem sequer me atrevo a
deixar perceber qual ele tivesse sido? Está aí vivo quem lho ouviu.
Vocês, que ainda ontem alfinetavam, e combatiam aqueles a quem chamavam «catolaicos» – os políticos do sector
católico que tem por órgão as Novidades,
e hoje me aparecem entendidos com os mesmos catolaicos?
Vocês, que ainda ontem filiavam a orientação ou a atitude da política do
Estado actual, que ferozmente e odientamente contrariam, no espírito do Centro Católico, e hoje fraternizam às
mil-maravilhas com o pior que há dos restos do mesmo Centro?
Vocês, julgarem-me?! Vocês, com todo esse cadastro de baixezas, mentiras,
hipocrisias, tartufices – julgarem-me, a sério, a mim?
Vocês estão matias de todo! Quem vos convenceu dessa patranha?
Alguns de vocês arrancaram a máscara que lhes serviu de gazua para poderem
entrar em minha casa, na intimidade do meu lar, na discreta confiança do meu
coração. E aos trinta e seis eu vejo-os agora igualados, irmanados,
confundidos, revelando-me a mesma face repelente do Ódio impotente e selvagem
que não reconhece escrúpulos, e se afunda no lodo com que sonhou poder manchar
o meu nome.
Não! Vocês são hediondos e ridículos. Destituíram um Rei, caluniando-o, tentando desonrá-lo; ameaçaram de passar por cima do actual3; a mim, agora, endereçam-me a Declaração famosa – que distribuem, ao domicílio, e vendem, nas lojas, a tostão!
O Rei continuou a ser o Rei; eu continuarei a ser quem sou.
Esses atestados que vocês tão facilmente passam não têm cotação; denotam a carência moral de quem os assina; e confirmam a integridade das vítimas.
Fiquem-se, vocês – que eu sigo o meu caminho.
Vocês são do Sardinha, não são do Rei; e querem fazer da Causa Monárquica, uma Causa que não seja a do Rei, mas do Sardinha, e dos amigos do Sardinha.
Para ser monárquico, e servir o Rei e os Princípios da Realeza, não preciso de placet dos trinta e seis, nem de licença da Causa do... António Sardinha.
Há mais de dez anos que exerço, quase sozinho, a minha actividade política. Os raros que estavam comigo porventura comigo continuarão.
A despeito de repetidos e insistentes convites, nunca quis entrar para o Integralismo. Nestes últimos dez anos, a
vocês só vos encontrei, para me contrariarem.
Quando em 1941, pronunciei na Sala de Salazar, na Universidade do Porto, a conferência das Palavras à Juventude4, essencialmente, manifestamente portuguesa e monárquica, vocês que nunca foram, e jamais serão capazes de atitude idêntica, como a acolheram? Com silêncio, ou pessimismo, ou hostilidade.
Quando fiz a campanha a favor da presença da Família Real nas Festas dos
Centenários, que me chegou de vocês? Ou silêncio, ou dificuldades, ou desdéns,
ou hostilidade.
A Família Real veio; mas não foi a vossa política torta e imbecil que a
trouxe: foi a minha política honesta, e feita à luz do dia.
Há meses, fui convidado para entrar no chamado Supremo Conselho Cultural da Causa Monárquica. Acedi, com
repugnância. Assisti ao acto de posse, e nem sequer «obrigado» disse. Presente à primeira reunião, quando vi que vocês
estavam lá todos, fiz considerações que claramente demonstraram que não me
sentia disposto a aturá-los. As minhas palavras de essa tarde devem ter sido
como chicotadas firmes que vocês sentiram – grotescamente ouriçados.
A Causa Monárquica, a pretexto de
uma reunião obscena, trazia-vos para o seu seio, e entregava-se ao domínio dos
vossos caprichos, das vossas ambições, dos vossos rancores. Era de prever o
resto. Ao sair dessa reunião, declarei a um amigo: «não volto a pôr os pés, aqui!»
A minha crítica a António Sardinha operou instantaneamente o milagre de
esclarecer tudo – depois de alinhar os meus inimigos.
Vocês não estão na Causa Monárquica, como soldados do Rei, ou para servir o
Rei: estão, sim, como homens da Junta
Central do Integralismo Lusitano, como sócios da sua sucursal comercial, A Gama, e para servir os interesses
fechados desse grupo funesto ontem, funesto hoje, sempre funesto.
Então, hoje, vocês, ao que parece, senhores da Causa Monárquica: à política do Rei, opõem, vocês, a política
sinistra da Revolução mestiça – a que o Rei chama «obter a Restauração monárquica pela Conquista».
A política sensata, inteligente e lealíssima do Rei, chamam vocês, «a certidão de óbito da Monarquia», e
opõem-lhe a política sinistra em que podem colaborar a Maçonaria, o Judaísmo, a
Democracia e o Bolchevismo – porque vocês sustentam que o perigo comunista é
uma... lenda, e recebem lições de carácter dos representantes dessas seitas.
Entre a vossa política e a política do Rei há um fosso: a política de
El-Rei é a política nacional; a vossa é a política do mais mesquinho
clientelismo e do mais rancoroso maquiavelismo.
Estão, vocês, agora, ao que parece, senhores da Causa Monárquica que se vos entregou imbecilmente. Pois bem.
Fiquem-se, vocês, a receber as tais lições de carácter dos inimigos mais
teimosos da Realeza – por ódio ao Chefe do Governo. Não é verdade, João da
Neiva? Pois bem.
Se encontrarem Rei adequado – porque o actual tem outras intenções políticas, façam a Monarquia – pela Conquista, vocês a dizerem que a Causa Monárquica arrasta pela lama a
bandeira da Monarquia, e a Causa a agradecer-lhes o elogio...
Mas que comédia tudo isto é! Vocês, patrões da Causa Monárquica!?
Vocês dizem-se monárquicos – mas romperam a obediência que deviam ao Senhor D. Manuel, unicamente porque Ele se não prestou a servir de estribo às vossas ambições. Dizem-se monárquicos – mas não respeitam os princípios fundamentais da Realeza, pretendendo que esta não seja terreno aberto aos vossos ódios e disparates. Dizem-se monárquicos – mas não acreditam no Rei, a Quem desprestigiam, porque Lhe desobedecem. Dizem-se monárquicos – mas não crêem na doutrina monárquica, nem na sua virtude. Dizem-se monárquicos – mas recebem lições de carácter, dos inimigos mais assanhados da Monarquia!
Dentro da Causa Monárquica, vocês são o elemento essencialmente dissolvente e corruptor. Senhores da Causa Monárquica, vocês têm que seguir as instruções régias que repudiam, e que defender a política do Rei que combatem, e alinhar o vosso passo pelo passo do Rei que desacreditam.
Que comédia!
Dentro da Causa Monárquica –
estão a atraí-la para um campo equívoco, em que nada se salvará, nem a honra,
pois não tardará muito que o país deseje saber qual é, afinal, o pensamento que
orienta essa Causa: – o pensamento do
Rei, claro, rectilíneo e nobre, ou o vosso pensamento, equívoco, ziguezagueado
e desleal? Desejará saber, o País, qual é a verdadeira atitude da Causa Monárquica diante da realidade do
Poder; a que o Rei, com inteligência e grandeza, sempre tem declarado, ou a que
vocês desde sempre adoptaram, e os tem levado a conchavar-se com os piores
inimigos do Rei e do Poder?
Que tenebrosa comédia!
Façam, vocês, e a Causa de António Sardinha, a Monarquia – pela Conquista.
A Monarquia que vocês fizerem, se tiverem Rei que os acompanhe, não será, porventura, a Monarquia de Banksters que, ontem, compungidamente, um de vocês me anunciava; mas feita por vocês, inspirada por vocês, informada por vocês, dirigida por vocês, será, indiscutivelmente, tal Monarquia, uma verdadeira Monarquia de Gangsters!
Façam-na, e sejam felizes...
Sexta-feira Santa, 1944.
Alfredo Pimenta.
1 – E não se percebe, ou percebe-se demais o escrúpulo com que tais expressões foram reproduzidas pelos editores, ao subtraírem ao conhecimento do público, por exemplo, o artigo que se intitula A Apologia da Guerra, e ocupa dez páginas do nº 5 da Nação Portuguesa. Que conteve o labor dos editores para os levar a esconder estas dez páginas, eles tão meticulosos, ao reproduzirem injúrias?
2 – Chamo a atenção para o prefácio-dedicatória do livro do Professor da Universidade de Salamanca, Francisco Tejada, Las Doctrinas Políticas en Portugal: Sardinha agasalha sob «el manto egregio de su nombre a todos cuantos añoramos la vuelta de aquella edad dorada» que «el mayor de todos los hispanos Filipe el calumniado», representa, quando, «reune en su mano los cestros de todos y cada uno de los reyes peninsulares» (págs. 8 e 10).
3 – Dizia António Sardinha: «...se ele (o Senhor D. Duarte) não quiser... outro Rei que as assembleias escolham». Que monárquico!
4 – Ver publicação Cadernos Culturais.
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