António Sardinha e o Grupo Recreativo dos Trinta e Seis
I
Quando escrevi o meu trabalho crítico sobre António Sardinha, demais sabia
eu o que estava a fazer. Ele seria como o bisturi implacável que rasga
furúnculo fundo – porque era o camartelo que reduzia a estilhas o ídolo com que
se andava a mistificar um Povo, e o gesto forte que fendia o véu sob que se
ocultava um sistema de mentecaptices.
Ninguém lhe conheceu o texto antes de ser publicado. Apenas em roda de
amigos, porque me perguntassem em que me ocupava agora, respondi que compunha
dois trabalhos explosivos.
Quando o opúsculo apareceu, logo me chegou aos ouvidos o rumor de que no
seio vasto da Madre-Gama, era grande a rabiosidade das crias dos gamos, e de
que pessoas sensatas e criteriosas procuravam contê-la, por certificadas de que
sairia disparate.
Tomei o meu lugar, para assistir à fita.
Passaram três semanas. Ouvira dizer que os irrequietos gamos andavam a
colher assinaturas para um Protesto muito
violento, – pois os convocara para capítulo, o seu Chefe, Mentor ou Dono,
não sei bem.
Na terça-feira, à noite, chamaram-me ao telefone, para me felicitarem. Como
fosse, esse dia, aniversário de uma filha, supus que se tratasse do aniversário
festivo, e corri ao telefone.
– Então que há?
– Quero dar-lhe os parabéns pela
torpeza dos seus inimigos!
Efectivamente...
No dia seguinte, recebi pelo correio, com dizeres que revelavam reacção
espontânea e simpática, um papel desprezível, onde se lêem estas palavras que
aqui reproduzo, para possível escarmento e vergonha dos seus signatários, se é
que algum deles, depois do que fez, é capaz de vergonha, ou sensível ao
escarmento:
«Publicou-se recentemente em Lisboa
um desprezível panfleto em que se pretende deprimir o valor das obras de
António Sardinha e ultrajar a alta dignidade da sua memória.
Os abaixo assinados, amigos,
companheiros ou admiradores do Poeta e Mestre do pensamento político português,
não podem atribuir àquele mórbido intento qualquer alcance ofensivo por que
deva responsabilizar-se um profissional do escândalo.
Mas por atenção a leitores ainda desprevenidos,
e pelo respeito à verdade, são levados a manifestar publicamente a sua
comiseração por uma triste anormalidade que subtrai o autor a qualquer domínio
do senso moral.
Lisboa, Março de 1944.»
Assinam esta prosa de Limoeiro – se se não ofendem os desgraçados que lá
penam seus infortúnios – assinam esta prosa de Limoeiro, trinta e seis
sujeitos: nove com quem já estava de relações cortadas; e doze a quem nem de
vista conheço; dos quinze restantes: treze tinham comigo relações de cortesia,
mais ou menos seguidas; dois considerava-os em verdade, meus amigos, um,
principalmente, Alberto de Monsaraz. É este o único que sinceramente lastimo
ver metido nesta cegada maltrapilha.
São trinta e seis, os heróis da façanha!
Eh! pá! Trinta e seis, para um homem só é coisa assinalada. Ou são frágeis
como palhiço de centeio seco, ou a minha pena é de calibre tão potente que só
em coorte cerrada se atrevem a investir com ela.
Trinta e seis para um homem só que não dispõe de mais nada, senão do vigor
do seu espírito e da inflexibilidade da sua coragem! Trinta e seis para um
homem só chega a ser a máxima das cobardias.
Nunca, nem para repelir injúrias, ou para discutir ideias, precisei de
recorrer a tribos. Solus, totus et unus
– é assim que tenho aparecido e apareço, assumindo, sozinho, a responsabilidade
das minhas palavras, das minhas sentenças, dos meus juízos, das minhas
atitudes, ou defrontando multidões exacerbadas e incontidas, como em Setúbal,
no Barreiro, em Coimbra, ou indiferente às possíveis reacções dos gamos – sejam
trinta e seis, ou trinta e seis mil...
Enlamearia a minha cara, por contrição ou pudor, se, algum dia, me passasse
pela cabeça angariar assinaturas para praticar, cobrir ou proteger qualquer
agressão que tivesse em mente, fosse contra quem fosse, quanto mais contra um
só!
Andavam os gamos no vasto seio da Madre-Gama que lhes dá o nome, quando
saíu o meu livro sobre o António Sardinha.
O Guia, o Mentor, o Mestre, o Dono, ou lá o que é, correu, esbaforido, e
gritou-lhes: «Então que silêncio é esse?!
Então não defendem a memória do grande morto? Têm quarenta e oito horas de
prazo...»
Habituado a que lhe obedeçam, dentro de quarenta e oito horas de prazo, o
Guia, o Mentor, o Mestre, o Dono ou lá o que é, foi-se à vida; e os gamos
tocados pelo ultimatum do Chefe,
Mentor, Mestre, Guia, Dono ou lá o que é, reuniram-se, conciliabularam,
contaram-se, e, uma vez que se viram trinta e seis bem juntos, bem unidos, bem
presos, arrancaram por aí fora, e, separando-se em duas colunas guerreiras,
quando perceberam a minha sombra, estacaram, criaram ânimo e... zás! despejaram
para cima da minha sombra aquele vómito cerebral.
Mas eu já ia longe, indiferente à arremetida dos gamos, e nem um salpico só
do seu vómito atingiu sequer a minha sombra...
E para conceber, gerar e dar á luz aquilo,
se reuniram, em coito danado, aqueles trinta e seis sujeitos!
Fenómeno único, na história literária do meu país!
Dão-se as mãos, em maçonaria de Entrudo, trinta e seis criaturas – não para
discutir, não para argumentar, não para esclarecer, não para rebater, mas para
injuriar, para insultar, para sujar quem está só, quem é só, quem, sozinho, se
apresenta a desafiar as cóleras e as injúrias das manadas, dos bandos, das
capelinhas, dos grupelhos, das chafaricas, tendo sobre todos eles a
superioridade manifesta, visível, indiscutível, de uma coragem e de uma
lealdade que nenhuma dessas púrrias de esgoto sabe o que seja!
Trinta e seis sujeitos ligados pelo cabresto da Impotência para um homem só
que não dispõe nem de Poder, nem de Imprensa, nem de Partidos, nem de Fortuna –
mas apenas da sinceridade dos seus juízos, e da consciência plena dos seus
deveres, havemos de convir em que é singular!
II
Impressionar-me-ia mais aquela Declaração, se a assinasse um apenas dos
trinta e seis – assina que o mais medíocre, ou o mais abjecto.
Assinado por trinta e seis figurões de cegada do Entrudo, constitui a mais
estrondosa vitória que eu podia desejar, para a minha crítica à obra e à pessoa
de António Sardinha, e, simultaneamente, o mais escandaloso, o mais retumbante
e insólito desserviço que à pessoa e à obra do criticado, se poderia prestar.
Em primeiro lugar, se, em Lisboa, não há amigos do Sardinha, com a nobreza
bastante para se não agruparem para insultar um homem sozinho, e com a
inteligência e a cultura suficientes para tentarem rebater as afirmações da
minha crítica, deploremos todos nós a situação do malogrado escritor, que só
tem a seu lado, aqueles trinta e seis signatários da Declaração. E estes não
valem um caracol apodrecido.
Em segundo lugar, críticas desfazem-se com críticas.
Quem às críticas responde com insultos, murros ou bengalada, confessa a sua
inaptidão, a sua incompetência, a sua ignorância, ou a sua indignidade. Pode
ser excelente agente provocador, exímio boxista ou óptimo esgrimista de pau.
Escritor é que não é.
Ao António Sardinha que inventaram, opus o António Sardinha real, humano,
como foi na sua vida e nos seus escritos.
Menti? Prove-se que menti.
Enganei-me? Prove-se que me enganei.
Deformei? Prove-se que deformei.
Feita a prova – ou me retrato, arrependido, e sou homem de bem; ou sustento
as falsidades, teimosamente, e sou indigno de viver entre homens honrados.
Nas cinquenta páginas da minha crítica, apontei factos, textos, realidades.
Por isso das esferas universitárias descem até mim vozes de simpatia pela
obra «de há muito necessária»...
Para os amigos sinceros de António Sardinha (não falo dos seus exploradores
comerciais que transmudaram o seu nome em moeda que corre no balcão, nem é
claro, dos trinta e seis patuscos da Declaração) para os amigos sinceros de
António Sardinha, – que os deve ter! – só uma de duas atitudes é digna: rebater
as posições da Crítica; ou o silêncio.
Insultar por insultar, como fizeram os trinta e seis famigerados heróis, é
de regateiros, não é de homens de letras. Mas se lhes puxava a língua para o
insulto soez, para a injúria canalha, começassem por tentar desfazer a crítica,
e, depois, espinoteassem à vontade para gáudio da galeria, porque, nessas
condições, o pinote é livre.
Se, juntando-se trinta e seis em grupo, e arremetendo em duas colunas
contra um homem sozinho, não tiveram a mais leve sombra de nobreza, tomando a
atitude que tomaram, afastando a Crítica para enxovalharem o crítico, faltaram
ao mais leve respeito devido à Inteligência. E, ao mesmo tempo, desampararam,
deixaram inteiramente a descoberto, a figura de António Sardinha.
Porque o público que já assiste interessado a este prélio, raciocina assim:
«se aqueles trinta e seis, onde há de
tudo, se escapam pela tangente da injúria e da difamação, é porque a Crítica
foi certa, e nada há a responder-lhe».
Desgraçadamente, a Crítica é inexpugnável. Desgraçadamente para Sardinha,
para os seus amigos sinceros, e até para mim que fui violentado a sanear a
atmosfera.
Os trinta e seis heróis, com a sua Declaração, pretendem desviar as
atenções da Crítica, e concentrá-las no crítico. O processo é pré-adâmico. E eu
não sou criança.
III
Intimo os trinta e seis signatários da Declaração, em conjunto ou
individualmente, a responder a estas perguntas, pelo menos:
1.º) É ou não verdade que, há anos para cá, são reproduzidas contra mim, e
pelos meus inimigos, as expressões injuriosas de Sardinha, sem que ninguém as
desautorize ou desabone?1
2.º) É ou não verdade que tais expressões injuriosas foram escritas
unicamente por eu não ter acompanhado Sardinha, na sua atitude de rebeldia
impertinente para com o Senhor D. Manuel?
3.º) É ou não verdade que Sardinha tendo, em 1918, escrito palavras de
louvor em minha honra, em 1921, procurara torcer-lhes o significado, e
diminuir-lhes o alcance?
4.º) É ou não verdade que Sardinha cooperou na greve de 1907, e mais tarde,
diante do sacrifício, faltou à sua palavra, furando a greve?
5.º) É ou não verdade que Sardinha confirmou as palavras que lhe foram
atribuídas, como comentário ao Regicídio?
6.º) É ou não verdade que Sardinha acusou Sua Alteza Real a Senhora Infanta
D. Aldegundes de ter traído os monárquicos portugueses?
7.º) É ou não verdade que Sardinha acusou Paiva Couceiro de dispor «a seu talante, de dinheiro que não lhe
pertencia»?
8.º) É ou não verdade que Sardinha acusou o Senhor D. Manuel de
cumplicidade com os que «venderam
ignobilmente, como marchantes, o sangue dos seus compatriotas», e de
conceder títulos «como o Banco de
Portugal fabrica notas»?
9.º) É ou não verdade Sardinha me pediu que o autorizasse a subscrever
comigo o projecto de revogação do Divórcio, que apresentei à Câmara dos Deputados,
em 1919?
10.º) É ou não verdade que a sua revisão histórica de D. João VI e de D.
Carlota Joaquina é decalcada sobre os trabalhos de Oliveira Lima e [Julian
Maria] Rubio?
11.º) É ou não verdade que o seu Prefácio à 2.ª edição das Memórias para a História e Teoria das Côrtes
Gerais, do Visconde de Santarém, é uma coisa absurda, visto a todas as
luzes?
12.º) É ou não verdade que Sardinha não fez História, limitando-se a
trabalhar sobre a história feita, e que não utilizou, nem folheou, nem conheceu
Documentos de Arquivos ou Cartulários impressos?
13.º) É ou não verdade que não foi antropólogo ou arqueólogo – mas escreveu
o Valor da Raça?
14.º) É ou não verdade que Sardinha caluniou Gomes Freire, afirmando que
ele se batera em Argel «com destemperado
arrôjo», quando Gomes Freire nunca esteve em Argel?
15.º) É ou não verdade que proclamou, contra a evidência dos textos, que os
Reis de Portugal, D. Afonso I e D. Sancho I se intitulavam «reis dos portugueses» em posição oposta à dos Reis de Castela e
Leão que se intitulavam «reis de Castela»
ou «reis de Leão», e esboçou
sobre essa falsidade – uma doutrina disparatada?
16.º) É ou não verdade que Sardinha escreveu a Aliança Peninsular, sobre a qual, um dos trinta e seis signatários
da Declaração formulou os juízos que transcrevi no meu livro?
17.º) É ou não verdade que a tese defendida nessa obra maléfica2
pertence a Oliveira Martins e Moniz Barreto?
18.º) É ou não verdade que Sardinha falava de S. Tomás, sem o ter lido
directamente?
19.º) É ou não verdade que proclamou Teófilo Braga «prelector da mística nacional», para, volvidos poucos tempos, se
penitenciar de ter lido e admirado o mesmíssimo Teófilo?
20.º) É ou não verdade que um dos trinta e seis signatários da Declaração
me narrou a tarde de Madrid, com a visão do coche de gala, e tudo o mais?
21.º) É ou não verdade que no conjunto da obra de Sardinha se proclama:
a) Primado do Político;
b) O exclusivismo da solução monárquica;
c) A ligação indissolúvel da Causa da Igreja e da Causa da Monarquia;
d) A sua antipatia pela França;
e) A sua hostilidade à Aliança Inglesa;
f) A sua predilecção pela Aliança Peninsular;
g) O seu amor ao Brasil;
h) O seu racismo anti-semita?
22.º) É ou não verdade que Sardinha viveu na Quinta do Bispo – desde 1914, a qual constituía, «pelo seu casamento a base principal dos seus interesses»?
23.º) É ou não verdade que na Acção
de 25 de Março de 1943, o Sr. Azinhal Abelho reproduziu, sem contestação de
ninguém, e portanto transitou em julgado, a afirmação feita por António Torres
de Carvalho, de que Sardinha morrera a tempo, porque de outra forma, «a fortuna da mulher ter-se-ia sumido, e
esta ficaria na miséria»?
Porque nenhum dos trinta e seis signatários da Declaração se enxofrou,
então, e protestou?
24.º) São ou não verdadeiras, autênticas, irrecusáveis, as quatro cartas
que Sardinha me dirigiu, e eu publiquei?
25.º) É ou não verdade que nos últimos tempos da sua vida, Sardinha
abandonara a tese do primado do Político, embarcara na chafarica dos Homens
livres, e incensara Proença e Sérgio, e proclamara que a República e Monarquia
eram mitos que nada exprimiam?
26.º) É ou não verdade que Sardinha nunca foi historiador, nem erudito, nem
pensador, mas apenas um colector de impressões, glosando-as através da viveza
do seu espírito, e do brilho ardente da sua palavra?
É isto que se discute, Srs. trinta e seis signatários da Declaração! É isto
que convém apurar! É isto que as gentes moças que estavam a ser ludibriadas,
esperam e desejam que se esclareça. É isto que vocês têm que sujeitar à análise
do Saber, se o possuem, ou da Dialéctica, se está ao vosso alcance.
É isto que os emprazo, é poeira, é evasiva, é chantage, é carnaval pelintra!
Vá, discutam, respondam, esclareçam – arrumem devidamente os assuntos dessas
vinte e seis perguntas, e, depois, insultem.
Recorram aos sistemas fluídicos, ou aos futurismos malabáricos, ou à
dialéctica retorcida – mas discutam, contestem, destruam os vinte e seis items do Libelo.
Isso é o que interessa. Para isso é o que os emprazo; a isso é que os intimo.
O resto, repito, é fumo, poeira, evasiva, chantage – Carnaval.
Respondam, e não se façam lorpas, e não digam como por aí dizem, que António Sardinha está acima das discussões. Porque acima das discussões – só Deus, ou o Papa, quando define, ex-cathedra, doutrina.
E o António Sardinha ainda não é Deus, nem Papa, em funções de vice-Deus; pertence à História profana, e à Crítica humanas.
Vamos: respondam!
1 comentário:
Ora cá está algo muito oportuno! Tb. hoje se levantam fumos de sardinhadas... alguns portugueses que negam o grande de cá, para ir buscar os "óculos" a Espanha, e volta para interpretar tudo e ser uma grande dor de cabeça! E têm seguidores... cada um tão pouco radicado no SER que "modernistas" havia de ser o nome mais caridoso a chamar-lhes.
Vou acompanhando a leitura.
Boa continuação de trabalho!
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