Talvez porque num dia me afastei da Igreja e respirei os
ares que fora da Igreja se respiram, e bebi em todas as fontes da incredulidade
e da heresia, a água corruptora da Negação, – e depois, na mais sincera das
humildades, sem coragem para erguer os olhos, desejando ser a última das
criaturas humanas, mas sentido sinceramente que o era, bati à porta que por
minhas próprias mãos fechara – fazendo isso, sem espalhafatos e sessões
solenes, na singeleza da minha consciência, – talvez por tudo isso, eu, hoje,
me admiro de certos espectáculos, de certas atitudes, de certas transigências,
e da fraca consistência dos sentimentos religiosos do meu País. E a decadência
de Portugal é obra da sua incredulidade.
Certo que os templos às vezes se enchem. Certo. Mas ao
menos certo de que há muitas conversas, muita distracção, muita falta de
consciência, nos templos cheios de gente.
Talvez porque fui um dia incrédulo, tudo isto seja para
mim estranho, e me cause assombro o ar mundanal com que se assiste à Missa – o
acto mais importante da liturgia católica, três vezes santo – e a naturalidade,
o à vontade com que se passa diante do altar do Santíssimo.
E observando isto, pergunto muitas vezes a mim próprio,
se aquela gente que enche os templos sabe onde está, e Quem está na Hóstia que
o Padre ergue, ou que o Sacrário esconde. E lendo jornais católicos e ouvindo
discursos e sermões católicos, e assistindo a controvérsias católicas –
pergunto ainda a mim próprio se os jornalistas e os oradores e os polemistas
sabem o que dizem e o que devem dizer.
Tenho a impressão de que se toda a gente que se diz
católica, desde aqueles que enchem os templos, aos jornalistas, aos oradores e
aos polemistas, soubessem o que estão fazendo, o que devem fazer – o nosso País
era outro, muito outro. Há a incredulidade brava, descarada; essa é pequena, ou
melhor, é de poucos. O nosso maior mal é a incredulidade mansa, aquela que nos
leva a conciliar os deveres para com Deus, com os nossos caprichos, as nossas
paixões, as nossa fraquezas, quando não é sujeitá-las aos mesmos caprichos, às
mesmas paixões, às mesmas fraquezas!
Confesso que prefiro a incredulidade brava, descarada,
atrevida, mesmo agressiva, porque, pelo menos, leva-me à defesa. Mas a incredulidade
brava é o ataque brusco, violento; perante ele, deito a mão a todos os meios de
defesa. A incredulidade mansa é a infiltração. Na nossa história contemporânea
temos duas fases da táctica demoníaca. Primeiro, a agressividade brutal: o
Estado republicano é como o vento de fúria. A Nação concentra-se, e defende-se.
É a fase dos desterros dos Bispos, das prisões dos párocos, dos encerramentos
dos templos, das proibições do culto – e as apóstrofes dos homens do Poder.
Essa fase passou. Estamos hoje na fase da infiltração.
Alfredo Pimenta in «Nas Vésperas do Estado Novo», 1937.
2 comentários:
Não não ... como baixou a fasquia para facilitar a entrada, e por isso o número cresce, dizem agora que estamos no tempo da "restauração"! :P
Isto é de um tempo em que só havia Missa Tridentina, e um exemplo de que só a missa não basta.
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