Conde D. Henrique |
Há um sem-número de palavras que toda a gente emprega, sem reflectir, e sem ter noção clara do conceito que elas traduzem.
Andam, essas palavras, no ar: a gente respira-as com o ar que respira, usa-as, e espalha-as, como usa e espalha o que emana do Inconsciente. A palavra Império, com os seus afins, é uma das tais palavras. Toda a gente fala em Império, em Imperialismo. A cada instante, nos jornais que nos fornecem o alimento espiritual normal, ou nos livros de polémica política que nos desorientam e endoidecem, esbarramos com essas palavras tremendas. E, no entanto, se fossemos perguntar a cada uma das pessoas que as usam e espalham, que ideia traduzem com elas, observaríamos a mais aflitiva das confusões, e a mais escandalosa das identidades. A palavra é velha como o homem.
Àquilo que os romanos chamavam Imperium, tinham os gregos chamado Arké, como se vê em Heródoto: «mégalen arkèn» (Clio, 91).
Da palavra latina é afim o termo Imperator, e da palavra grega o termo arkós (Odisseia, canto X, v. 204).
Imperium e Imperator são filhos de Impero, originariamente: in+paro, «tomar medidas, fazer preparativos para que uma coisa se realize» (Ernout et Meillet, Dictt. étym. de la langue latine, palavra impero).
Se os gregos tinham, a par do seu Arkós, os termos Autokrátôs ou Basileús, para designarem o poder supremo do Arké, os latinos possuíam, ao lado de Imperator, o Dux, com os seus filhos ducator e ducatus, ou Princeps, e outros. Isto, que parece extremamente simples, não tem nada de simples – dada a elasticidade da significação dos termos.
Tanto no grego, como no latim.
Neste, por exemplo, o Imperium tanto pode ser o poder paternal, como o supremo poder político, e o Imperator tanto pode ser o que César define, na sua Guerra Civil, em oposição ao Legatus, como aquele de que nos fala Cícero quando o considera senhor do mundo – «Populus imperator omnium gentium», ou Varrão, ao dizer-nos que ele é o vingador das injúrias feitas pelo inimigo ao império do Povo.
E dentro destes pontos limites, quantas modalidades, quantas cores, no significado do termo.
O que é certo, porém, é que na imprecisão da tradução conceitual, no mar imenso e revolto das ideias expressadas, na paisagem difusa e confusa das noções transmitidas, há um fundo em que todas as raízes mergulham, e algo de que todas as raízes se sustentam.
No Arké e no Imperium, há o poder; no Arkós e no Imperator, há o exercício do mando.
Quando chegamos àquela época a que, por acinte e infeliz má vontade, se chama Idade Média (Idade Média, porquê?!), quando chegamos a essa época, notamos coisas curiosas. Um rei de Inglaterra atribui-se três títulos: Basileus, Imperator e Dominus: «Ego Edgarus Anglorum Basileus, omniunque Regum Insularum Oceani, quae Britanniam circumjacent, cunctarumque Nationum infra eam includuntur, Imperator et Dominus» (Du Cange, Glossarium, palavra Imperatoris).
Não lhe bastavam os termos latinos: foi-lhe ainda preciso recorrer ao termo grego tão predilecto em Bizâncio...
Ao nosso próprio conde D. Henrique, se chamou, um dia, Imperator. É num documento de 1105 – uma doação: «Sub Adefonso Principis, et gener ejus Enricho Imperator Portugalense...» (in João Pedro Ribeiro, Dissertações, III, 1.ª parte, n.º 141).
Imperator Portugalense! Imperator de Portugal. Não há outro vestígio de tão pomposo título. Mas este mostra, além do mais, que o Imperator está nas velhas tradições portuguesas.
O termo Império veio pelos tempos fora, e, entre nós, Camões, no século XVI, propõe-se cantar, entre outras coisas,
...as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império...
(I, 2)
e aconselha o Rei a que estime os seus cavaleiros, pois estes, à custa do próprio sangue,
Estendem não somente a Lei de cima,
Mas inda vosso Império preeminente
(X, 151)
É outra vez a Fé e o Império. Qual, aqui, o conceito camoniano do Império? O conceito geográfico? O conceito político?
No primeiro sentido, o tomou Fr. Francisco de Santo Agostinho de Macedo, o monstro da Inteligência, quando, ao traduzir o termo, fala em «regni fines».
No segundo sentido o toma o doutíssimo Epifânio, quando interpreta: «senhorio político».
Qual dos dois interpreta bem o pensamento do Poeta? Só averiguá-lo dava para uma conferência...
Alfredo Pimenta in «O Império Colonial como factor de Civilização», 1936.
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