As palavras que tomei por tema o dizem: Semen est Verbum Dei. Sabeis (cristãos) a causa por que se faz, hoje, tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como dizia) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito admira que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabant, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: «Quem semeia ventos, colhe tempestades». Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta em vez de colher fruto?
Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são a palavra de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavra de Deus, antes podem ser palavra do Demónio. Tentou o Demónio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore Dei. Esta sentença era tirada do capítulo oitavo do Deuteronómio. Vendo o Demónio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-O ao Templo, e alegando o lugar do Salmo noventa, diz-lhe desta maneira: Mitte te deorsum; scriptum est enim, quia angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: «Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal». De sorte que Cristo defendeu-Se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus; pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que, tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do Templo. O pináculo do Templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-O no monte, tentou-O no Templo: no deserto, tentou-O com a gula; no monte, tentou-O com a ambição; no Templo, tentou-O com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua Fé.
Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo, indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso parecer agudas, que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do Testamento Velho, ou nos Apóstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Génesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois, se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que toam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos de que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem?! E então ver cabecear o auditório a estas coisas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente não sei de que mais me espante: se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos! Oh, que bem levantou o pregador! Assim é; mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura, oiça-me.
Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista S. Mateus que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes. Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os Judeus destruíssem o Templo, Ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista S. João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois, se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui. Quando Cristo disse que em três dias reedificaria o Templo, falava o Senhor do templo místico de Seu Corpo, o qual os Judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico, e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah! Senhor, quantos falsos testemunhos Vos levantam! Quantas vezes oiço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes oiço dizer que são palavras Vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número! Que muito admira logo que as nossas imaginações, e as nossas vaidades, e as nossas fábulas, não tenham a eficácia de palavra de Deus!
Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos, pois neles se veio a cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt: «Virá tempo», diz S. Paulo, «em que os homens não sofrerão a doutrina sã». Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus: «Mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão, e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas». A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas autem convertentur: «Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às fábulas».
Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento, e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são subtilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso!
Pouco disse S. Paulo em lhes chamar comédia, porque muitos sermões há, que não são comédia, são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professámos, mortalhas), a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este se rompeu, que é o que se ouve?
Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse, e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos, e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto, e com as acções, havia de fazer em pó e em cinza, os vícios.
Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós, que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afectada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas.
Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia, o rei veste como rei e fala como rei; o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio; o rústico veste como rústico e fala como rústico; mas um pregador vestir como religioso e falar como... Não o quero dizer, por reverência do lugar.
Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia, sequer não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de sermos seus filhos? Pois por que não os imitamos? Porque não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou S. Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, porque não pregarei a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?
Pe. António Vieira in «Sermão da Sexagésima», 1655.
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