Estão em cena dois diabos, Belzebu e Dinato, este preparado para escrever o que o companheiro observar.
Entra Todo-o-Mundo, homem como rico mercador, e faz que anda buscando alguma coisa que se lhe perdeu; e logo após ele um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém.
Ninguém:
Que andas tu aí buscando?
Todo-o-Mundo:
Mil coisas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando,
por quão bom é porfiar.
Ninguém:
Como hás nome, cavalheiro?
Todo-o-Mundo:
Eu hei nome Todo-o-Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro,
e sempre nisto me fundo.
Ninguém:
Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu:
Esta é boa experiência!
Dinato, escreve isto bem.
Dinato:
Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
Que Ninguém busca consciência,
e Todo-o-Mundo dinheiro.
Ninguém:
E agora que buscas lá?
Todo-o-Mundo:
Busco honra muito grande.
Ninguém:
E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu:
Outra adição nos acode:
escreve logo aí a fundo
que busca honra Todo-o-Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém:
Buscas outro mor bem que esse?
Todo-o-Mundo:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém:
E eu quem me repreendesse
em cada coisa que errasse.
Belzebu:
Escreve mais.
Dinato:
Que tens sabido?
Belzebu:
Que quer em extremo grado
Todo-o-Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém:
Buscas mais, amigo meu?
Todo-o-Mundo:
Busco a vida e quem ma dê.
Ninguém:
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu:
Escreve lá outra sorte.
Dinato:
Que sorte?
Belzebu:
Muito garrida:
Todo-o-Mundo busca a vida,
e Ninguém conhece a morte.
Todo-o-Mundo:
E mais queria o paraíso,
sem mo ninguém estorvar.
Ninguém:
E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu:
Escreve com muito aviso.
Dinato:
Que escreverei?
Belzebu:
Escreve
que Todo-o-Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo-o-Mundo:
Folgo muito de enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém:
Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.
Belzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso!
Dinato:
Quê?
Belzebu:
Que Todo-o-Mundo é mentiroso,
e Ninguém diz a verdade.
Ninguém:
Que mais buscas?
Todo-o-Mundo:
Lisonjear.
Ninguém:
Eu sou todo desengano.
Belzebu:
Escreve, ande la mano!
Dinato:
Que me mandas assentar?
Belzebu:
Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo-o-Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
Gil Vicente in «Auto da Lusitânia», 1532.
Sem comentários:
Enviar um comentário