Inovações tomadas por Tradição


O que mais nos escandaliza de tudo quanto lemos no epílogo do tal Ensaio é o que se encontra na mesma página, coluna 2ª, lin. 24. Diz assim: «A perfeita união das duas Câmaras com o Governo, e a religiosa obediência e fidelidade dos súbditos, bem depressa conseguirão tornar florescente, rica e estimada uma Nação, que nos tempos em que a regiam Instituições semelhantes, encheu o Mundo de admiração por seus altos feitos». Ora, falando com sinceridade, e deixando de parte toda a arma do ridículo e da invectiva, se isto não é uma alucinação, ou um lapsus pennae do Senhor Franzini, não sabemos que lhe pertença outro nome senão o de Fanatismo Carteiro ou de blasfémia histórica. E na verdade, diga-nos o Senhor Franzini quando, ou em que época, houve em Portugal duas Câmaras? Nós desafiamos a todo o Mundo, que nos mostre na nossa História essa forma de Governo, e até sustentamos que a palavra Câmaras, na acepção em que a toma o Senhor Franzini, é inteiramente peregrina nos Dicionários antigos da língua. Câmaras Municipais, sim Senhor; mas Câmaras deliberantes, isso nunca se ouviu da boca de um Portugal Velho. Os três Braços da Nação, Clero, Nobreza, e Povo, reunidos em Côrtes, e consultados para darem o seu Parecer, juntando muitas vezes submissamente alguma Petição sobre objectos interessantes ao bem do Estado, isso se viu algumas vezes em Coimbra, em Montemor-o-Novo, em Lisboa, etc.; mas Câmaras Legislativas, Extraordinárias e Ordinárias, Alta e Baixa, isso nunca: engana-se, por não dizer que mente o Senhor Franzini; e ainda mais se engana, quando assevera, que no tempo dessas Instituições é que Portugal encheu o Mundo de admiração por seus altos feitos. Se nunca as houve, como é que no tempo delas é que se praticaram os grandes feitos Portugueses?! Nós ainda avançamos mais, que nem mesmo as Côrtes antigas, que os Senhores Reis costumavam chamar em certos casos, foram nunca as que dirigiram esses grandes feitos que assombraram o Mundo. Por ventura chamou a Côrtes o Senhor D. João I, quando depois de ter triunfado dos Leões de Castela nos Campos de Aljubarrota, quis combater as Meias Luas nos Litorais d'África e intentou a Conquista de Ceuta?! Não, sem dúvida. Leia-se a sua Crónica, Part. 2ª, Cap. 113, e aí se achará que ele mandou reunir toda a Frota na Baía de Lagos, e depois de estar toda a gente embarcada e prestes a dar à vela, sem que ninguém soubesse até ali o seu intento, disse ao seu Confessor, que era um Franciscano, e se chamava Fr. João de Xira, o único de quem tinha confiado o segredo, que prégasse àquela gente, e que lhe manifestasse a sua derrota: assim o fez o bom do Frade, e com tanta unção e energia, que foram aqueles os Portugueses primeiros, que nas muralhas de Ceuta, fizeram tremolar as Quinas d'Afonso Henriques, e ele o primeiro Prégador, que na Mesquita de Ceuta, já purificada, fez soar a voz do Evangelho. Eis aqui as Câmaras, que convocou este grande Monarca.

D. Frei Fortunato de São Boaventura in «Novo Vocabulário Filosófico-Democrático, indispensável para todos os que desejem entender a nova língua revolucionária», Nº 6, 1832.

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