Escravatura: contra a mistificação liberal-maçónica


§. VII. Mas como depois de feita a minha Análise se me quis fazer um novo ataque, trazendo-me em oposição as Leis, que permitem o comércio do resgate dos escravos da Costa d'África, os Alvarás do 1º de Abril de 1680 e o de 6 de Junho de 1775, que declaram livres todos os Índios do Brasil, proibindo a escravidão a respeito deles; assim como também as Bulas que os confirmaram; para que não se diga, que as ditas Leis são entre si antinómicas, ou contraditórias, nem também que a minha opinião, enquanto defende a justiça de umas, é contrária à justiça das outras; eu passo a dar uma breve notícia das diversas circunstâncias, em que se achavam os Índios do Brasil e os Pretos d'África, no tempo das descobertas dos Portugueses, em uma e outra parte do Mundo; circunstâncias, que deram ocasião às diversas disposições das ditas nossas Leis e Bulas.

§. VIII. Os Portugueses, que primeiro descobriram a Costa da Guiné, já acharam muitas Nações com algum género de Governo, obediência e subordinação, comércio e agricultura; entre as quais já também se achava introduzida a escravidão, ou dos vencidos na guerra, ou dos réus de certos crimes capitais; de tal sorte, que querendo eles comprar aos Portugueses alguns géneros de que eles necessitavam, ofereceram em troca e permutação, alguns dos seus escravos, que vindo para Portugal, foram comprados por aqueles, que de seus serviços precisavam; e ao Senhor Infante D. Henrique, como encarregado e Governador daquelas descobertas, e bons serviços que ele tinha feito a Portugal, lhe deu o Senhor Rei D. Afonso V, a dízima dos interesses do comércio dos escravos, como se vê na sua Carta de 15 de Setembro de 1448, confirmada pelo Senhor Rei D. Manuel por carta de 22 de Fevereiro de 1502. Este comércio foi aprovado por Bulas do Papa Nicolau V, de 6 de Janeiro de 1454, de Calisto III, de 3 de Março de 1455, de Xisto IV, de 21 de Junho de 1481, e de Leão X, de 3 de Novembro de 1514, por se achar ser este comércio o meio de se introduzir a nossa Santa Religião entre aquelas Nações bárbaras, ou ao menos salvar muitas almas, que aliás seriam perdidas no centro do Gentilismo.

§. IX. Os Portugueses, que primeiro descobriram as terras do Brasil, não acharam Nações propriamente, acharam sim alguns bandos de homens selvagens, sem algum género de governo, nem de subordinação; eram algumas famílias errantes e dispersas, que viviam em pobres choupanas, muito ainda no primeiro estado da Natureza, talvez desgarradas dos primeiros Habitantes do México ou do Peru: em toda a grande extensão do Brasil até hoje, não se tem descoberto algum vestígio de grande população, nem um só edifício ou Obra de Arte, que denotasse algum princípio de Civilização. Os montes, as serras, os campos, os bosques totalmente incultos, pareciam estar ainda com a mesma face, com que tinham saído das mãos da Natureza, e que ainda não eram habitados por Entes Racionais. Aqueles bandos de Selvagens errantes, apenas usavam da caça e da pesca, e de alguns frutos silvestres: eles se faziam a guerra como as feras para, ou afugentarem os seus inimigos, ou os devorarem: eles ainda não conheciam a Escravidão, nem a subordinação, este primeiro passo para a Civilização das Nações.

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§. XI. Sendo pois o Índio pouco hábil para a agricultura, que era o fim da escravidão, e indomável pelo meio da força; pois que enquanto ali houvesse uma serra, uma brenha e um asilo para um selvagem, seria mais fácil destruí-los, do que sujeitá-los de repente a um trabalho para eles novo; e conhecendo-se também, que era mais fácil chamá-los para a comunicação dos Portugueses pelos meios doces e pacíficos da Religião, foi necessário proibir a escravidão daqueles Índios, e declará-los livres, para que uma vez entrados na Sociedade, se fossem com o tempo e com o exemplo, acostumando ao trabalho e a um novo género de vida.

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§. XIII. O Preto d'África apresentou os atributos da força e das qualidades necessárias para cultivador das terras da Zona tórrida; conheceu-se que as Nações de África estavam já acostumadas aos trabalhos da Agricultura debaixo de um Sol ardente, e que já de tempos antiquíssimos estavam no costume da escravidão, e de venderem os braços que lhes eram pesados, inúteis, ou prejudiciais; costume que, ou a necessidade do seu maior bem, ou do seu menor mal, lhes tinha ensinado; ou que lhes tinha sido transmitido, o que era transcendente a todos os outros Povos do antigo Mundo sem exceptuar a Europa; se lançou mão deste meio sem alterar o estado em que se achavam aquelas Nações, melhorando-se a condição daqueles desgraçados, que pelas Leis da sua Nação eram já condenados a serem escravos, mortos, ou vendidos para fora do seu País, levando-os para a comunicação dos Povos civilizados e para a obediência das Leis protectoras, e defensoras da vida e da existência de tais escravos, Leis desconhecidas no seu País.

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§. XVII. Quanto à Escravidão d'África; sabe-se que não há, nem pode haver, comércio senão daquilo que sobeja do necessário de cada um; porque ninguém vende o pão de que precisa para a boca: isto que procede a respeito de cada um, em particular, procede a respeito do todo de uma Nação de uma parte do Mundo, etc. Logo, não pode haver comércio sem haver supérfluo. Sabe-se mais que os objectos e a base do Comércio são os trabalhos da agricultura e da indústria dos homens, aquela que sobeja das necessidades de cada um.

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§. XXII. Em uma palavra, a Escravidão na África já estava estabelecida, os Portugueses não fizeram mais do que aproveitarem os desperdícios daquelas Nações; e por isso, as nossas Leis e os nossos Soberanos, como bons políticos, e encarregados de fazer o maior bem dos seus Vassalos, o permitiram em favor da cultura das suas terras que, aliás, eram perdidas. A escravidão dos Índios do Brasil ainda não estava estabelecida, e se achou mesmo inútil estabelecê-la, e até contrária ao fim a que se tinha proposto; ela só servia de aumentar dificuldades aos meios doces, suaves e pacíficos, que se tinham adoptado para a civilização daqueles bárbaros e para a propagação do Evangelho no meio da Gentilidade que, por isso, que não tinham alguma Religião, era fácil de abraçar a primeira que se lhes ensinava; e como em tal caso, a Escravidão daqueles Índios já não era um bem, mas sim um mal para a Religião e para o Estado, foi necessário proibi-la.

§. XXIII. Sendo pois diversas as circunstâncias em que se achavam, e ainda se acham os Pretos d'África e os Índios do Brasil no tempo das descobertas dos Portugueses, em uma e outra parte do Mundo, foram também diversas as disposições das ditas Leis; e como a justiça das Leis humanas não é absoluta, mas sim relativa às circunstâncias, ficou cada uma das ditas Leis sendo justa relativamente ao objecto de que tratava; assim como também a minha opinião, a qual enquanto defende a justiça da Lei que permite a escravidão e o resgate dos Escravos da Costa d'África, não ofende a justiça da Lei que proíbe a escravidão dos Índios do Brasil.

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§. XXV. Olhando para este negócio pela parte da Religião, eu não vejo coisa alguma contra ela. Os Apóstolos, tratando da escravidão, nunca disseram que ela era contra a Religião: S. Pedro na sua Epístola I. recomenda aos escravos que obedeçam aos seus Senhores, ainda que sejam maus ou rigorosos: S. Paulo, na sua Epístola aos Colossenses, recomenda aos Senhores que prestem aos seus escravos, o que a Justiça e a equidade pedem deles, e que se lembrem que eles têm um Senhor no Céu, que os há-de tratar como eles tratarem aos seus Escravos. A Epístola de S. Paulo a Filémon, em que lhe pede que perdoe ao seu escravo Onésimo o furto e a fugida que ele lhe tinha feito, é um chefe de obra de eloquência neste género: nada é mais terno, mais tocante, mais persuasivo, mais animado. S. Paulo, na sua Epístola, mistura as preces com a autoridade, os louvores com as recomendações, os motivos da Religião com os da civilidade e do reconhecimento: ele, enfim, tudo mete em obra para reconciliar o Senhor com o escravo, mas nunca disse que era injusto, nem contra a Religião, que Onésimo fosse seu escravo.

§. XXVI. Dirá por ventura um Cristão que a Moral de tais Filósofos é mais perfeita e mais sublime do que a Moral que nos ensinaram os Apóstolos, ou do que a Moral que os Apóstolos não reprovaram? A Moral de tais Filósofos, cujos princípios tem mostrado a experiência que, ou são falsos, ou revolucionários, havemos nós de adoptar? As obras dos homens não chegam, nem jamais chegarão, à suma perfeição, que é só reservada a Deus: o maior bem dos Homens no estado da Sociedade é o meio entre os extremos; querer sair deste meio é precipitar-se no abismo, é cair no furor, ou do fanatismo, ou da superstição.

§. XXVII. Eu me persuado que não ofendo quando defendo a justiça das Leis do meu Soberano; quando trabalho por sufocar a opinião que se opõe à Lei do Estado; quando só tenho em vista o sossego externo e interno dos meus Concidadãos; quando sirvo à minha Pátria; quando mesmo do mal, que fazem os Bárbaros entre si, eu para todos tiro um bem; e quando, enfim, a soma dos bens é tão grande, que ainda um mal à vista deles é nada.


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Nota: D. José de Azeredo Coutinho foi Bispo de Olinda, Bispo de Elvas e Inquisidor-Geral do Reino de Portugal. Nasceu em Campos dos Goytacazes, a fidelíssima diocese de D. António de Castro Mayer.

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