Reconquista de Santarém e São Miguel Arcanjo


Em Santarém, a soleníssima festa da Aparição de S. Miguel, esclarecido patrono desta antiga e populosa Vila, em cujo feliz dia [8 de Maio] foi recuperada dos Bárbaros pelo ínclito Rei D. Afonso Henriques, acompanhado mais de seu católico zelo e confiança divina, que do numeroso exército de soldados e bélicos instrumentos, com que se achava naquela apertada ocasião, aparecendo no Céu à noite precedente à batalha sinais demonstrativos da famosa vitória, que no seguinte dia havia de alcançar dos inimigos da Fé. Arvorado então o Estandarte Real nas ameias de seus muros por três valerosos soldados, que no maior silêncio da noite, subiram a eles com admirável ousadia. Aberta a porta daquela inexpugnável praça com um martelo de ferro, que outros administraram de fora, entrou logo o S. Rei, e ajoelhado em terra, mãos e olhos no Céu, fez oração a Deus e uma breve fala aos seus, dizendo em alta voz, para que de todos fosse ouvido: Eia valentes Soldados, aqui tendes a vosso Rei e companheiro, não só para testemunha das façanhas que neste comenos obrardes, mas para exemplo do muito que estais obrigados a executar contra os inimigos da Igreja. Animados com estas fervorosas palavras, os Cristãos, invocando o Patrão de Espanha [Patrono da Península Ibérica], fizeram bravo estrago e carniceira lastimosa nos Mouros, avantajando-se entre todas, aquela invencível espada, banhada tantas vezes do Agareno sangue, executando tão inauditas proezas, que escurecem as mais célebres que publica a trombeta da fama, ouvindo-se por todas as partes desentoados gritos e alaridos, acrescentando este miserável labirinto a confusão das armas e obscuridade da noite, com que não havia quem se pudesse valer e dar a conselho, até que passados aos fios dos luzentes ferros os principais Mouros que lhe resistiram. Ao romper da alva, teve a duvidosa e travada peleja feliz remate em favor dos Cristãos. Porque no tempo que os invencíveis Portugueses, em companhia de seu vitorioso Rei, meneavam as armas temporais nas terras de sua conquista, contra esta vil e infame canalha, em defesa da liberdade Real e exaltação da Religião Católica, meneavam as espirituais, não somente S. Teotónio no Mosteiro de S. Cruz de Coimbra, com seus Cónegos, mas também S. Bernardo no de Claraval, com seus Monges, implorando cada qual o glorioso triunfo, que o S. Rei conseguiu de seus contrários e declarados inimigos de Cristo. E vendo ambos com os olhos do espírito o processo de combate pouco favorável aos nossos, apressaram as rogativas e preces, com maior veemência, até que se decretou no Consistório divino, ficasse o campo e a vitória pelas Armas Católicas. Passados 24 anos, veio el-Rei de Sevilha, Albaraque, sobre a dita Vila com poderosíssimo exército, e vendo-se o magnânimo Rei D. Afonso Henriques apertado, recorreu (como tinha de costume) ao Céu, negociando o feliz despacho por meio do Arcanjo S. Miguel (de quem era particular devoto) e saindo os nossos ao campo, animados de suas afectuosas palavras e alentados com o diviníssimo Sacramento do Altar, andando o esforçado Rei no maior conflito da batalha, apareceu a seu lado um Braço armado com asa no coto, que jogava as armas destrissimamente (insígnia com que ordinariamente se pinta este tutelar da Igreja Católica e defensor do povo Cristão) fazendo bravo estrago nos Mouros, com que brevemente a duvidosa vitória ficou pelo S. Rei, e reconhecendo a ele a tão soberano patrocínio, instituiu no Real Mosteiro de Alcobaça a Cavalaria da Ala, com particulares Constituições, debaixo da Regra de S. Bento, que perseverou somente enquanto viveu. Por estes e outros singulares benefícios, que por intercessão do S. Arcanjo, alcançou esta nobre Vila do Senhor dos exércitos, lhe levantou Ermida, aonde vai o Senado dela todos os anos neste dia [8 de Maio], com solene Procissão, render as graças das assinaladas vitórias que ali conseguiram as Lusitanas Armas dos inimigos da Fé, nos primórdios deste escolhido e santificado Reino de Portugal.

Pe. Jorge Cardoso in «Hagiológio Lusitano dos Santos e Varões ilustres em virtude, do Reino de Portugal e suas conquistas», Tomo III, 1666.

Sem comentários: