A Rainha Ginga


Governando o Reino de Angola, Fernão de Sousa, Senhor de Gouveia, tiveram os Portugueses guerra com o Rei daquele Reino, e o venceram e mataram, aprisionando-lhe três filhas, as quais, instruídas nos Mistérios da Fé, receberam o primeiro dos Sacramentos, que lhe administrou o Bispo, sendo Padrinho o Governador, e assistindo os Ministros da República e Cabos de Guerra, que então se achavam na Cidade de S. Paulo de Luanda. Foi aquele dia sumamente festivo para todos os moradores da mesma Cidade e das terras circunvizinhas, por verem três Princesas prostradas aos pés de Cristo, à imitação dos três Reis do Oriente, prostrados também em outro dia aos mesmos sagrados pés; verificando-se assim, que as Majestades da Terra, desde o nascimento do Sol até ao seu Ocaso, lhe renderam, e rendem, adorações. Chamou-se a primeira Dona Ana, a segunda Dona Graça, a terceira Dona Bárbara, e o Governador, em memória daquele acto sucedido no seu tempo, deu o seu apelido à primeira, e se chamou Dona Ana de Sousa. Foram, porém, muito vários os sucessos das três; A Dona Graça foi morta pelos Portugueses, por ser convencida em crime de traição contra o Estado: A Dona Bárbara, passando diferentes fortunas, já prósperas, já adversas, morreu Rainha de Matamba, com mostras de verdadeira Cristã e em boa correspondência com os Portugueses.
Dona Ana foi mulher de tão raro e tão extravagante génio, e de tanto juízo e valor, que a viver em tempos mais antigos, não seria menos celebrada do que o foram as Semíramis, as Cleópatras, as Zenóbias. Saiu furtivamente da Cidade de S. Paulo, e metida pelo Sertão, se armou contra os Portugueses, dizia ela, que em vingança da morte de seu pai. Largou o nome e sobrenome do Baptismo, e chamou-se como de antes Ginga Amena: Abraçou outra vez os ritos daquela bárbara Gentilidade e se fez dogmatista de outros novos, que lhe conciliaram tanta reputação, que era tida entre os Gentios por coisa celestial e superior: Vestiu-se em trajes de homem e não queria que lhe chamassem Rainha, senão Rei; Sustentava-se de carne humana e gostava muito das reções do peito, porque nelas entravam os corações: Qualquer leve descuido bastava para cortar as cabeças aos seus mais íntimos criados e aos que lhe eram mais chegados em sangue, e dizia, muito senhora de si: Que os Reis não tinham parentes. Vestia ricas galas e ornava-se com preciosas jóias: Recebia os Embaixadores dos Reis e Príncipes daquelas vastíssimas Regiões, com excessiva pompa, sentada em um majestoso Trono, em uma sala coberta de ricas alcatifas e ornada de vistosas armações, e só dava assento alto, em um banquinho de palha, ao Embaixador de El-Rei do Congo, a quem só reconhecia igual: Os Embaixadores de outro qualquer Rei sentavam-se no chão. Era tal para com a sua pessoa a veneração e tanto o respeito dos Negros (ou fossem amigos ou inimigos, ou a encontrassem vencida ou vencedora) que nenhum se atrevia a pôr nela os olhos, e a grande espaço do lugar, onde sabiam que ela estava, se lançavam por terra de bruços e não se levantavam sem ordem sua, e antes se deixariam matar do que fazerem o contrário; Servia-se de trezentos moços e de outras tantas moças de dezoito até vinte e cinco anos, eles em trajes de mulheres e elas de homens, e viviam divididos por seis estâncias, e em cada uma destas, cinquenta de um sexo e cinquenta do outro; Mas com pena inviolável de morte se alguns se desmandavam no vício sensual; ordenando ao mesmo tempo a união e mostrando abominar os efeitos que ela geralmente causa, procurando por este modo (que era o verdadeiro fim daquela extravagância) ter mais repetidas ocasiões de cortar cabeças. Fora das estâncias não tinha proibição alguma o vício da carne, mas com tal lei, que a nenhuma mulher se consentia parir dentro do arraial sob pena de morte, e quando lhe davam as dores, saiam aos campos e as seguiam uns cachorros, que já trazia costumados a este efeito, que logo despedaçavam e comiam as crianças, e as mães, lavando-se nos rios, tornavam para o arraial: Trazia nos braços duas argolas de latão, e nelas, dizem, que dois familiares com quem falava e consultava as suas coisas e sucessos; Tinha também uma arca de prata, cheia de ossos de defuntos e de outros trastes semelhantes, de que também usava para os seus malefícios; Isto, quanto ao estilo da sua vida na Côrte e na paz. Na campanha e na guerra, trouxe aos princípios um esquadrão volante, e a modo de salteadora, invadia as povoações dos seus mesmos naturais, sustentando-se, e aos seus, da carne dos velhos e inúteis que matava, incorporando no seu Esquadrão os moços para a guerra, e as moças para a multiplicação; Aos Portugueses fazia maiores danos, acometendo-os com tanta velocidade, que em nenhum lugar, nem tempo, se davam por seguros. Aparecia e desaparecia como relâmpago, mas sempre fulminando raios de ira e de vingança; Depois ajuntou numerosos exércitos e nos apresentou muitas batalhas campais, e em muitas ficou vencedora e em outras vencida, e em uma e outra fortuna, mostrava sempre igual valor e igual semblante; Quando os Portugueses a imaginavam sem forças e sem armas, então lhe aparecia mais poderosa e formidável: Sabia escolher os sítios, dispor os quartéis, formar os esquadrões, armar as ciladas, e todos os outros modos e artifícios de guerra, como o mais perito e experimentado Capitão; Com a entrada dos Holandeses em Angola, e fomentada por eles, cobrou novos brios e nos começou a invadir de novo e quase nos teve lançado fora daquelas terras; Mas com a expulsão dos mesmos [Holandeses] executada por Salvador Correia de Sá e Benevides, vendo-se já velha e cortada dos contínuos trabalhos, mandou pedir pazes aos Portugueses, e dali por diante viveu com eles em boa correspondência; Admitiu no seu Reino aos Religiosos Missionários e se deixou persuadir tão fortemente das suas admoestações, que se desfez de tudo o que lhe servia às suas más artes, abraçou os ritos Católicos, e começou a viver como verdadeira Cristã. Edificou na sua Côrte de Matamba um sumptuoso Templo dedicado à Mãe de Deus, e as mais das tardes ia a ele com as suas Damas rezar o Terço; Procurou com toda a eficácia que lhe foi possível, a conversão de todos os seus vassalos, o que em grande parte conseguiu: Morreu catolicamente, com todos os Sacramentos, e muitos Sinais de predestinada.

Fonte: «Notícia memorável da vida e acções da Rainha Ginga Amena, natural do Reino de Angola», 1749.

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