O livro em que isto se encontra é muito gabado – por quem não reflecte no que lê, e é propenso a deixar-se ir na corrente doce do ribeiro. Refiro-me à Aliança Peninsular em que Sardinha desenvolve e glosa a tese esboçada por Moniz Barreto, e vincada por Oliveira Martins em artigos de jornal.
A tese é má, por perigosa, e partir de premissas falsas. Sardinha mói e remói, pisa e repisa os argumentos, num tecido pastoso de sofismas, erros, digressões, juízos tendenciosos e quimeras absurdas.
Hipólito Raposo, um dos seus amigos íntimos, confessa que o autor, pouco tempo depois do aparecimento da Aliança Peninsular já «se sentia desgostoso e magoado com pessoas e instituições de além-fronteiras por certas razões e circunstâncias» que não deseja revelar.
Pois é pena que o não revele, porque essas razões poderiam em muito evitar contágios indesejáveis.
E Hipólito Raposo continua: «Depois da morte dele, ao meu conhecimento vieram, e por mim passaram alguns dados dos quais seguramente deduzi que não eram compreendidos e aceites em toda a pureza da sua sinceridade, em todo o escrúpulo do seu patriotismo, os esforços do nosso querido companheiro» (in Vanguarda, de Coimbra, de 17 de Março de 1928).
Esse livro não afecta o carácter de Sardinha ou o seu amor à Pátria; mas afecta a sua inteligência e a sua cultura, e serve – ai de nós! – desígnios hostis ao interesse nacional.
Importa pouco que esses desígnios ultrapassem o objectivo do escritor, ou se manifestem à margem dele. Mas importa muito que utilizem o livro como seu instrumento.
Esse livro é uma triste monstruosidade. E o depoimento insuspeitíssimo do Sr. Hipólito Raposo é a sua condenação irrevogável.
A História objectiva ensina precisamente o contrário do que António Sardinha pretende convencer os seus leitores.
Só um português cego pela paixão mais doentia, ou por demência calamitosa, pode aceitar a unidade hispânica, como a concebeu Sardinha: «a unidade hispânica exige que os dois povos se mantenham livres no seu governo interno, embora ligados militar e diplomaticamente para a defesa comum, porque comum, pensando bem, é o património que a ambos pertence» (págs. 63 e 64).
Esta tese está visceralmente, substancialmente errada. Não posso evidentemente desenvolver aqui a minha oposição a ela, porque os meus argumentos emanam dos factos, e eu não posso discutir ou comentar os factos.
Mas a inteligência do leitor esclarecido e independente facilmente suprirá o meu silêncio.
A tese vincara-a Oliveira Martins, quando dizia que «devemos outra vez aliar as nossas forças no propósito de uma defesa comum», depois de ter proclamado: «união de pensamento e acção; independência de governo» (Dispersos, II, págs. 216 e 219).
Espero que as gerações futuras, ainda não tocadas da mitomania que por aí vai, e porventura dela afastadas pelos esforços do meu espírito e de outros como eu, sepulte para sempre esse livro nefasto e essa tese demoníaca, no silêncio e no desprezo.
Que as circunstâncias de um momento possam conduzir-nos a uma cooperação ocasional, compreendo; mas transformar essa precaridade, essa momentaneidade, em perenidade e sistema, em princípio e norma de vida, só pode pretende-lo quem desconheça por completo a História de oito séculos de Portugal, ou a conheça mal, – que é ainda pior.
Tenho permanentemente diante de mim, os juízos e desejos dos altos espíritos, como Juan de Valera ou Menendez y Pelayo que valem mais, para mim, na sinceridade do seu pensamento puro, desinteressado e livre de preconceitos políticos ou respeitos e conveniências, do que todos os argumentos de António Sardinha ou de Oliveira Martins.
Entre a hostilidade, que formalmente condeno, e a tese que António Sardinha foi buscar a Oliveira Martins, de uma política militar e diplomática comum, que decididamente rejeito, há lugar para a única posição sensata que a História justifica: a da simpatia fundada na compreensão recíproca da independência plena dos nossos respectivos interesses, – o que não exclui, é óbvio, qualquer entendimento eventual que as circunstâncias aconselhem, como em 1936.
Tanto Oliveira Martins como Sardinha, seu eco, falam muito na política da Dinastia de Avis, chamando-lhe política de cooperação.
Mas isto é uma escandalosa falsificação da História, contra que protestam todos os textos!
Nunca, até ao advento do Liberalismo ou da Revolução, a política portuguesa se orientou no sentido de comunidade militar ou diplomática. Parece incrível que se diga o contrário.
Se António Sardinha tivesse sido historiador e erudito, nunca teria escrito as páginas infelizes da Aliança Peninsular, que, no seu conjunto, não passa de simples romance.
Tinha, indiscutivelmente, apreciável cultura literária, que lhe forneceram principalmente escritores franceses, castelhanos ou brasileiros do nosso tempo. Os seus livros estão recheados com transcrições de um número limitado de autores das três literaturas, e são estes que lhe ministram, em segunda mão, os conhecimentos, informações ou sugestões de que a sua inteligência se alimenta, para o desenvolvimento das suas teses.
Alfredo Pimenta in «A propósito de António Sardinha», 1944.
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