O espírito das revoluções (I Parte)


Lede, vos torno a dizer, a história da Revolução Francesa, deste horrendo quadro que desonra os anais do género humano; subi à sua origem, examinai as suas causas e os seus progressos e vede a sua perfeita analogia com as revoluções que renasceram das suas cinzas. A de Espanha vai correspondendo perfeitamente ao seu modelo; a de Nápoles e a do Piemonte começaram adoptando por base a de Espanha, donde emanaram as inspirações; quanto à nossa de Portugal, os factos não precisam comentário: observai e julgai. Todas são filhas da mesma mãe, beberam o mesmo leite e hão-de derramar sobre os homens iguais favores.
João Wycliff, transferindo de Deus para os homens a origem de todo o poder, armou os povos contra os Governos, desenvolvendo no século XIV as sementes da revolução que rebentou no século XVIII. Se ele não as desenvolvesse, outro as desenvolveria, porque existem no espírito humano impaciente de subordinação e amigo da novidade. Era um simples controversista; e as suas doutrinas tiveram a maior influência nos destinos de uma grande parte do género humano. Questões de escola tem por muitas vezes alagado o mundo em sangue.
Tiraram um lugar da Universidade de Oxford a certos religiosos para o darem a Wycliff; e sobrevindo questões a este respeito, tornaram a tirá-lo a este para o restituírem aos religiosos. Wycliff apelou para o Papa, que decidiu contra ele; e daqui começaram as suas declamações contra a Cúria Romana e contra o clero em geral, que o conduziram a atacar os dízimos e a propriedade nos indivíduos e a pregar a igualdade e a independência entre os homens. O efeito foi pronto e nada menos do que uma sublevação geral dos homens do campo, que, segundo as leis de Inglaterra, eram obrigados a cultivar as terras dos senhores territoriais, e quiseram fazer-se independentes. Mais de duzentos mil pegaram em armas e cometeram os maiores excessos gritando liberdade, liberdade. Vede como vão de acordo as revoluções modernas.
De Inglaterra estas doutrinas passaram para Alemanha; e se consultardes a história de João Hus e de Jerónimo de Praga, vereis como estes famosos entusiastas inflamaram com elas o espírito público. João o Vesgo (Žižka) foi ainda mais longe. Formou exércitos, sublevou os povos, queimou cidades, devastou os países por onde passava e tentou estabelecer o Governo republicano, destruindo o monárquico. Três exércitos mandou contra ele o Imperador Sigismundo e todos destruiu Žižka; e perdendo em uma batalha o olho que lhe restava, assim mesmo continuou as suas devastações à frente das tropas. Conta-se que ordenara em seu testamento, que da sua pele se fizesse um tambor, cujo som reunisse os seus sequazes; e aqui tendes um facto que pinta ao vivo o atroz entusiasmo de semelhantes chefes. O certo é que depois de morrer, o seu espírito foi ainda fatal por muito tempo ao Imperador, que gastou 16 anos para pacificar a Boémia. Vede quanto pode o fanatismo revolucionário.
Este mesmo espírito sopeado, mas não extinto, surgiu mais de um século depois para reproduzir ainda por outro as mesmas perturbações em escala mais extensa. Martinho Lutero foi o novo campeão, que em um canto da Saxónia, levantou o estandarte da revolta, na aparência somente contra a Igreja, mas na realidade contra todos os poderes. Comoveu-se todo o Norte com os seus erros teológicos e com as suas máximas políticas: uma delas era a invasão das propriedades eclesiásticas, e foi um meio de dar ainda maior força ao seu partido. No seu tratado do Fisco comum, deu a ideia de um tesouro público em que se recolhessem as rendas de todos os Bispados, Mosteiros e Abadias, e, em geral, de todas as propriedades da Igreja, que intentava usurpar. Com isto acendeu a cobiça dos Governos avarentos e empobrecidos, fornecendo-lhes meios de suprir à sua vaidade; e com estes novos Baltazares não houve mais segurança para os bens eclesiásticos. Vede também como nisto vão de acordo as revoluções modernas.
Se por este meio conseguiu Lutero chamar ao seu partido Príncipes, Senhores e Magistrados, sublevando-os contra os Papas e contra os Bispos: Müntzer, um dos seus mais célebres sectários, achou o de sublevar os povos contra todos estes, pregando a igualdade. Ele e os seus discípulos armaram novos bandos de furiosos, que cometeram, em nome de Deus, cruezas inauditas, despedaçando tudo quanto encontravam nas suas correrias, principalmente os eclesiásticos e os nobres, que são também o alvo principal a que se encaminha o ódio dos revolucionários modernos. Aqui teve principio a seita dos Anabaptistas, que como feras assolaram ainda por muito tempo a Alemanha depois da morte dos seus chefes.
Por outra parte João Calvino, chefe de uma nova seita conforme à de Lutero em muitos princípios, e diversa em outros, ateava o fogo da discórdia e das guerras civis nos países onde lavrou. O espírito do Calvinismo era republicanizar os povos. Depois que Genebra o admitiu é que foi verdadeiramente República. Executou a mesma empresa na Holanda; e se o não conseguiu em França não foi por falta de diligências. Uma longa série de perturbações e de guerras civis desde Francisco I até Luís XIV foi o fruto das intrigas dos Reformadores: os Reis foram obrigados a conceder-lhes muitas praças de segurança e verificou-se por monumentos autênticos que o seu projecto era fazer de toda a França uma República dividida em departamentos, como depois fizeram os revolucionários de 1792; e escolhendo La Rochelle para sua capital, nesta cidade sustentaram dois cercos, sendo as tropas Reais obrigadas a levantar o primeiro e indo o Cardeal de Richelieu comandar o segundo, que durou mais de um ano, depois do qual foram obrigados a render-se.
Destas doutrinas nasceu em Inglaterra a facção dos Puritanos, que por muito tempo dispôs do trono, e mais de uma vez o ensanguentou. Foram elas as que sublevaram os povos na longa série de revoluções e de guerras civis que devastaram as ilhas Britânicas. Estes mesmos Puritanos chegaram também a formar uma espécie de República na Escócia. Dentre eles se levantou o famoso Prégador João Knox, que com as suas declamações violentas concitou os povos contra a Rainha Maria Stuart e foi o mais ardente promotor das desgraças desta infeliz Princesa, que só terminaram no cadafalso.
Foram estas mesmas doutrinas, estes mesmos Puritanos os que animaram os Comuns de Inglaterra a declararem-se Soberanos; os que levaram Carlos I ao patíbulo, os que formaram a efémera República Inglesa, a qual teve de ceder bem depressa ao génio e às intrigas do hipócrita Cromwell, que no meio de tantas perturbações se apoderou facilmente do poder supremo debaixo do título de Protector. As perturbações que a Inglaterra sofreu nesta época foram o prelúdio e o modelo porque depois se havia de desenvolver a Revolução Francesa: Cromwell o protótipo de Bonaparte. Por morte do Protector, seu filho Ricardo Cromwell, que não tinha o génio do pai, foi expulso, e os Ingleses chamaram ao trono Carlos II; mas a tranquilidade pública continuou a ser perturbada durante o seu reinado; e o de Jacques II pelas mesmas facções, imbuídas nos mesmos princípios. Jacques foi expulso e em lugar dele foi entronizado seu genro Guilherme III, que sabendo reinar com firmeza, soube também conter as facções.
Assim acabaram na Inglaterra as guerras de opinião, depois de terem feito correr ondas de sangue. No Continente as perturbações causadas pela Reforma só acalmaram com a paz de Vestefália, que sancionou muitos daqueles princípios contra os quais se tinham levantado tantos Príncipes e deu à Europa um novo Direito público. Digo que acalmaram e vai muito do acalmar ao extinguir. O espírito da Reforma sobreviveu aos Reformadores do século XVI e não podia saciar-se sem uma revolução geral de princípios que desorganizasse toda a ordem existente, confundindo todos os seus elementos. A matéria é mui vasta, e eu não tenho feito mais do que marcar certos pontos cardeais na história de quatro séculos, para que possais, sem divagar muito, chegar ao conhecimento do mais essencial. Lançai uma vista de olhos sobre eles e sobre todos os grandes acontecimentos públicos que com ele tem relação, vereis como estão ligados entre si, formando uma longa cadeia bem perceptível desde Wycliff e seus sequazes, até Mirabeau e seus confrades, em que aparece sempre o amor da novidade agitando o mundo para destruir tudo o que é antigo, ou seja bom, ou seja mau; e as paixões procurando sacudir o freio que lhes impõe a Religião e os Governos; e uma vez que o tenham conseguido perturbar o mundo com seus excessos.

(Continua...)

José Acúrsio das Neves in «Cartas de um Português aos seus Concidadãos sobre diferentes objectos de utilidade geral e individual», Carta VIII, 1822.

1 comentário:

Anónimo disse...

Boa noite.
Parabéns.
Carlos