Antigamente os idiotas calavam-se...


Contei-lhe então uma história de antigamente. Teria eu dezoito ou dezanove anos, e meu herói dezassete ou dezoito. Ele era o aluno repetente de uma escola qualquer, e eu seu "explicador" de matemática. Eu sentia a resistência tenaz que, dentro dele, se opunha às generalizações matemáticas. Ficava rubro, vexado e alagado de suor.
Recomeçava eu a explicar certo problema, quando ele, numa decisão brusca, me deteve e suplicou:
– Explica devagar, devagarzinho, porque eu sou burro.
Na outra ponta do fio [do telefone], o meu amigo de hoje explodiu:
– Que génio! QUE GÉNIO!
Era efectivamente genial aquele moço de antigamente. Não segui a sua trajectória e não sei se ele hoje amadureceu e desabrochou aquele botão de sabedoria em flor, ou se virou idiota e, portanto, intelectual. O que pude garantir ao meu amigo não-católico é que antigamente a atitude média dos idiotas era tímida, modesta e respeitosa. E isto que se observava nas ruas, nas aulas particulares, nos salões de bilhar e nos clubes de xadrez, observava-se também na Igreja. De repente, em certo ângulo da história, mercê de algum gás novo na atmosfera, ou de algum factor ainda não deslindado, os idiotas amanheceram novos e confiantes. Já ouvi e li muitas vezes o termo "mutação" surripiado das prateleiras da genética e aplicado à história, à Igreja, ao dogma e aos costumes. Dois ou três bispos franceses não sabem falar dez minutos sem usar o termo "um mundo em mutação".
Se mutação houve, estou inclinado a crer que foi naquele ponto a que atrás aludimos: os idiotas que antigamente se calavam estão hoje com a palavra, possuem hoje todos os meios de comunicação. O mundo é deles. Será genético o fenómeno e por conseguinte transmissível?

Gustavo Corção in jornal «O Globo», 22 de Agosto de 1970.

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