O mito de Aristides Sousa Mendes


Em Junho de 2013 o embaixador e professor universitário Carlos Fernandes (1922-2019) publicou o livro «O cônsul Aristides Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira», o qual foi destacado aqui no blogue. Sete anos depois, relembramos a entrevista que o Sr. Embaixador deu na altura ao jornal «O Diabo»:

Como foi possível a construção do mito de Aristides Sousa Mendes?
Eles pensavam, naturalmente, que ninguém apareceria a contar a verdade. Mas deviam saber que eu não poderia ficar calado.

Diz-se que ele deu vistos para salvar judeus que estavam em perigo de vida...
Ele não salvou ninguém, porque ninguém estava em perigo de vida e também não deu o visto de graça a ninguém, porque precisava do dinheiro. Só deu vistos de graça depois de destituído, que se saiba. Mas isso, o Teotónio Pereira, que tinha ido de Madrid para o meter na ordem, porque ele não obedecia a ninguém.

Esses problemas já vinham de trás?
Ele teve processos durante a Iª República. Só teve processos depois do 28 de Maio em 1935-36, e só teve uma repreensão. Ele julgou que podia continuar assim. Aliás, com Salazar ele só teve o último processo.

Não houve uma perseguição por parte de Salazar?
Não. O regime protegeu-o. Deu-lhe um posto que não era da categoria dele. O irmão gémeo dele, o César, foi o primeiro Ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar. Apesar de lá ter estado pouco mais que oito meses. Mas depois foi colocado em bons postos. Foi gente altamente protegida. Houve uma protecção consciente.
Quando comecei a trabalhar no Ministério, muito novo, com Rebelo da Silva, assisti a todas as conversas sobre o Aristides. Ele contou-me toda a tragédia dele, que tinha sido castigado. Naquela altura já não estava, mas ele queria ir outra vez para o estrangeiro, mas não estava em condições para isso. Eu explico o que é o instituto da disponibilidade no livro, porque muita gente não sabe o que é. É algo que vem da Iª República, não foi inventado pelo Salazar.
O Sousa Mendes é posto, em 1919, dois anos na disponibilidade pelas asneiras que fez em Curitiba, de 1919 a 1921, quando Salazar nem pensava vir para o Governo. Ele chegou a empregar um filho no Consulado e foi autorizado a trabalhar com o irmão quando estava na disponibilidade.

Porque é que ele era protegido?
O que me disse Rebelo da Silva, na altura, foi que ele tinha uma família grande e digna, e no Ministério havia compreensão pela sua situação difícil. Nem ele nem o irmão tinham amigos no Ministério ou tinham tido uma carreira académica brilhante, mas ele era protegido por causa da família.

Na vida trágica de Sousa Mendes há uma figura sinistra, o Rabino Kruger. O que acha dele?
Esse homem estragou-lhe a vida. Ele conheceu-o na Bélgica, mas quando foi para Bordéus a vida piorou, começou a ganhar menos e deixou de ter a importância que tinha em Antuérpia, onde esteve dez anos e já era decano. Em Bordéus passa a ser um Zé-ninguém, foi uma mudança drástica. Aí conheceu uma rapariga nova, muito culta e muito modernaça, com quem se envolveu e que acabou por engravidar. Prometeu divorciar-se da mulher e casar com ela. Ora, ele vivia no consulado com a família que assistia ao escândalo que a amante lá fazia. Imagine a tragédia! Isto levou a que ele, no dia 14 de Junho de 1940, caísse de cama com uma depressão. Nesta altura aparece-lhe o Rabino Kruger a pedir um visto para Portugal, mas o Ministério recusa o visto porque teve má informação dele da Bélgica.

Porque precisava ele do visto?
Porque não tinha visto para outro lado. Essa é outra coisa que as pessoas não sabem ou não querem dizer. Só precisava de pedir visto para Portugal quem não tivesse visto para outro país ou viagem marcada para lá. O Kruger devia ser um pobretana, porque senão tinha ido comprar um visto ao Haiti que os vendia. Aristides acabou por lhe dar o visto, mesmo sem autorização, algo que ele fazia. São vistos irregulares, isto é, os vistos dados sem autorização são legais, mas irregulares. Só os que ele deu depois de destituído é que são ilegais.

Mas os judeus não estavam a ser perseguidos?
Os judeus começaram a fugir da Áustria, em 1938, depois do Anschluss, quando Hitler toma a Áustria com o apoio de toda a gente, excepto dos judeus e da Casa Real austríaca. Há uma debandada geral de judeus austríacos, na sua maioria pobres, que querem emigrar, porque passam a ser alemães juridicamente e não querem ficar sob Hitler. Portugal tinha um acordo de supressão de vistos com a Alemanha desde 1926, como os judeus austríacos passam a ser alemães e há uma debandada, os países da Europa quiseram pôr termo a essa debandada e condicionaram os vistos a autorização. Mas isto durou pouco, porque depois veio a guerra.
Mas o Hitler só invade a Europa Ocidental em Maio de 1940, quando há uma nova debandada de judeus. Só depois, em 1942, na Conferência de Wannsee é que é decretada a solução final contra os judeus e começa a perseguição. Não é que os tratassem bem antes, mas não os punham em campos de concentração. O Aristides não salva ninguém da morte, porque em 1940 ninguém estava em risco de vida.

E em relação ao número de vistos concedidos?
O Rui Afonso fala em 30 mil, dos quais 10 mil são judeus, mas só cá chegaram uns poucos de milhares até Junho de 1940. Se estavam em perigo de vida, ficaram lá? Para onde foram? Para Espanha não foram. É claro que nunca existiram.

Fonte: Jornal «O Diabo», 2 de Julho de 2013.

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