O desmembramento da Monarquia (I)


Si regnum in se dividatur, non potest regnum illud stare.
S. Marcos

Um triste acontecimento que deve trazer consequências, as mais funestas para a Nação, se a Sabedoria de S. Majestade, e de seus Ministros, as não poder prevenir, vem interromper o fio das reflexões que comecei na carta precedente e continuarei nas seguintes; porém a matéria é análoga. À perda da Baía de Todos-os-Santos e do Maranhão, seguiu-se rapidamente a do Grão-Pará. De todas aquelas vastas regiões, que se estendem desde o Equador até à embocadura do Rio da Prata, as quais os nossos antepassados descobriram, povoaram e cultivaram, e de cuja união à Mãe Pátria resultava o esplendor do Trono, a riqueza e a grandeza da Nação, já não possuímos nem um palmo de terra. Novo mimo da nossa regeneração política!
O que sabemos das nossas possessões da Ásia e da África oriental, é que ficavam convulsas. Terão elas seguido a sorte do Brasil? Que mágoa, que dor penetrante para o Digno Herdeiro do Trono do Venturoso, Manuel, e daquela abençoada série de Reis, que levaram o nome e as armas Portuguesas mais longe que os Assírios, que os Persas, que Alexandre, que os Romanos e que os Árabes as suas! Que mágoa, que dor penetrante para os descendentes dos ilustres guerreiros, que à custa do seu sangue fundaram e defenderam este império gigantesco, que agora vemos despedaçado!
Tal é o efeito do veneno, que os nossos chamados Regeneradores introduziram nas entranhas da Pátria, para fazerem cair em dissolução todos os seus membros. Adeus, senhor Brasil, dizia um deles com insultante e bárbara enfâse, quando viu que o Brasil nos ia escapando: fazia um objecto dos seus gracejos a perda da mais vasta e rica porção do Reino unido. Outros pretendiam consolar-nos deste desastre com a ilusão das futuras vantagens, que poderíamos tirar dos nossos actualmente miseráveis estabelecimentos da África ocidental. Não nos enganemos com quimeras. Os dias da nossa glória são passados, desapareceram as nossas riquezas, acabou a nossa grandeza, a não vir algum novo Gama, que nos conduza ao Oriente por novos caminhos desconhecidos; algum novo Cabral, que nos descubra outro Brasil.
Este golpe devia prever-se, porque outras não podiam ser as consequências do nosso S. Bartolomeu de 1820, na verdade menos sanguinoso que o de França, em 1571; porém mais transcendente nos seus resultados. A Monarquia Francesa, depois das mortandades e das guerras civis que acompanharam e seguiram aquela catástrofe, ressurgiu nos brilhantes dias de Henrique IV, mais robusta e florescente do que antes fora: o Império Português está destruído e desmembrado talvez para sempre. E poderão os povos ver com bons olhos os autores de tantos males, os seus cooperadores e adeptos, ou coisa que a eles se assemelhe? Poderão os povos pôr neles alguma confiança, esperar que lhes venha por eles algum bem, ou deixar de odiar qualquer obra, que haja de sair das suas mãos?
Revolucionou-se a França e perdeu todas as suas colónias: revolucionou-se a Espanha e perdeu também as suas. E porque seria Portugal isento desta lei, que é a lei das revoluções filiais, que se dirigem pelo espírito da Revolução Francesa, mãe e mestra de todas as que depois vieram? Nápoles e Sardenha não perderam colónias, porque as não tinham: haviam de perdê-las se as tivessem, e se mãos poderosas não acudissem a apagar o incêndio logo no seu princípio. É o carácter de todas as revoluções de cunho moderno.
Apenas rompeu a revolução em França, partiram emissários, que levaram o espírito de desorganização a todas as colónias Francesas. Apenas rompeu em Portugal, todas as possessões Portuguesas foram convidadas à revolta; e não foi necessário que partissem emissários, porque os apóstolos da revolução já por lá andavam em numerosa quantidade, e mesmo tinham já feito alguns ensaios. Filhos Primogénitos, diziam os povos do ultramar pela boca de um dos chamados representantes da Nação (ou antes os insinuava este para que eles o dissessem) em um discurso de estilo teatral proferido na sessão das Cortes de 30 de Janeiro de 1821: Filhos primogénitos da grande família, a que temos a honra de pertencer; por espaço de mais de trezentos anos, só nos vieram da Europa as rajadas do despotismo; porque nos quereis privar agora da viração prestadia da liberdade constitucional? Mas este convite foi muito tardio: em consequência dos que o tinham precedido, já nesse tempo lavrava o fogo por todos nossos estabelecimentos, e não ficou um só que se não revolucionasse.
Tornando às colónias Francesas, nada é tão espantoso como a revolução da de S. Domingos: drama trágico em dois actos, que custou 80 000 vidas dentro de uma ilha. No primeiro acto figuravam brancos e negros da América contra brancos da Europa; no segundo somente negros contra brancos, e os negros ficaram de cima, compreendendo nesta denominação os mulatos. Enchei-vos de horror à vista dos seguintes extractos de uma proclamação, com que o chefe negro Dessalines excitou os seus à matança dos brancos: «Meu braço suspendido sobre as suas cabeças tem demorado por muito tempo descarregar o golpe... sede cruéis e sem misericórdia, semelhantes a uma torrente furiosa que tem rompido os seus diques, e que arrasta tudo o que tenta opor-se às suas ondas. Vossa fúria vingadora destruiu, e levou tudo no seu curso impetuoso... Onde está o vil habitante do Haiti, tão indigno da regeneração, que não julgue ter cumprido os Decretos do Eterno exterminando estes tigres sequiosos de sangue? Se há algum, fuja: A nação indignada o expulsa do seu seio; vá ocultar a sua vergonha longe de nós. O ar puro, que nós respiramos, não é feito para os seus órgãos grosseiros; é o ar puro da liberdade augusta e triunfante... Eu tenho salvado a minha pátria; eu tenho vingado a América. Esta confissão, que eu faço à face da terra e do Céu, faz o meu orgulho e a minha glória. Guerra de morte aos tiranos! eis a minha divisa. Liberdade e Independência! eis o grito da nossa reunião.»
E não achais vós que as rajadas do despotismo e a viração prestadia da liberdade, do nosso Deputado em Cortes, tem uma tendência particular para influir na América Portuguesa alguma coisa semelhante às atrocidades do negro Dessalines! A revolução do Brasil tem sido semelhante ao primeiro acto da de S. Domingos. A Divina Providencia salve o Brasil dos horrores do segundo acto daquele tremendo drama.

(Continua...)

José Acúrsio das Neves in «Cartas de um Português aos seus Concidadãos sobre diferentes objectos de utilidade geral e individual», Carta XII, 1822.

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