A crença racional na existência de Deus


A crença em Deus assenta em o que podemos chamar um acto de fé racional. Consciente ou inconscientemente, o movimento do espírito é este: (1) Tudo quanto existe é efeito de uma causa; o universo existe; portanto o universo é efeito de uma causa. (2) O efeito não pode conter mais que o que está contido na causa, (pois então seria efeito de mais causas que uma); o universo, no mais alto ponto em que nós o conhecemos, que é o homem, contém a consciência; portanto a causa do universo deve conter a consciência, isto é, deve ser uma Causa consciente. (3) O efeito não pode conter tudo quanto se contém na causa, pois então seria idêntico à causa, e não haveria causa nem efeito; o universo é múltiplo, extenso (no tempo e no espaço, ou no espaço-tempo) e diverso (isto é, composto de coisas não só muitas mas diferentes entre si); portanto a causa do universo tem que conter mais que multiplicidade, ou seja totalidade, mais que extensão, ou seja infinidade, mais que diversidade, ou seja plenitude. (...)
Por qualquer especulação desta ordem, em geral subconsciente ou instintiva, chega o homem à crença racional na existência de Deus.

Fernando Pessoa in «Textos Filosóficos».

Lei Natural


Se a vontade dos povos, os decretos dos príncipes, as sentenças dos juízes, constituíssem o direito, seriam então de direito o latrocínio, o adultério, a falsificação dos testamentos, desde que aprovados pelo sufrágio e beneplácito das multidões.
Se fosse tão grande o poder das sentenças e das ordens dos insensatos, que chegassem estes ao ponto de alterar, com suas deliberações, a natureza das coisas, por que motivo não poderiam os mesmos decidir que o que é mau e pernicioso se considerasse bom e salutar? Ou por que motivo a lei, podendo transformar algo injusto em direito, não poderia do mesmo modo transformar o mal em bem? É que, para distinguir a lei boa da má, outra norma não temos senão aquela da natureza. Não apenas o justo e o injusto são discernidos pela natureza, mas também tudo o que é honesto e o que é torpe. Esta nos deu, assim, um senso comum, por ela insculpido em nosso espírito, para que identifiquemos a honestidade com a virtude e a torpeza com o vício.
Pensar que isso depende da opinião de cada um, e não da natureza, é coisa de louco.

Cícero in De Legibus.

Batalha de São Mamede


O reinado de D. Afonso Henriques é, por assim dizer, uma peça inteiriça: todo ele, de ponta a ponta, é um sistema de esforços conjugados, e superiormente dirigidos, para a independência do Condado de Portugal.
A batalha de S. Mamede é o primeiro acto decisivo, claro, que não admite dúvidas, da série gloriosa de feitos do fundador do Reino de Portugal. É o nosso grito de independência, é a nossa primeira afirmação de personalidade e de vontade. Vitorioso da hoste estrangeira, Afonso Henriques ergue voo, nas suas legítimas aspirações, e sonha o talhar de fronteiras que é o seu longo reinado.
Génio político e militar formidável, Afonso Henriques é o obreiro máximo da nossa existência como Nação. E foi na batalha de S. Mamede que o plano grandioso se fixou, se concretizou e definiu. Sem a batalha de S. Mamede, a história de Portugal não podia existir: ela foi o seu berço.
Tudo quanto veio depois, a obra inolvidável das dinastias que se seguiram, saiu do combate dos campos de S. Mamede, em que D. Afonso Henriques passando sobre os seus sentimentos de filho, defrontou a vontade da Mãe, subjugada à influência do estrangeiro. Perdoa-se a D. Teresa essa fraqueza sentimental de uma paixão serôdia – recordando-se que também ela cooperara, ainda em vida do marido, para que as condições do condado portucalense tornassem possível o gesto audacioso de Afonso Henriques, em 1128.
Volvidos 800 anos sobre essa data fascinante, a Nação persiste. Foi a continuidade da Realeza que garantiu essa persistência. Neste ano em que escrevo, em que me irritam os nervos, cantos de sereia castelhana que mascaram mal disfarçados apetites do Imperialismo Ibérico, é um dever, e um dever sagrado, recordar a batalha de S. Mamede, e a figura prestigiosa do Rei que a venceu. Coincidência curiosa: há oito séculos, nasceu Portugal. Em 1128, ergue-se o Sol magnífico; em 1828, abre-se a noite nefanda. Como vimaranense e como português, não posso, nesta hora, calar o grito sagrado: – Viva Portugal!

Alfredo Pimenta in «A Ilustração Moderna», n.º 25/26, Julho-Agosto de 1928.

A Democracia é uma quimera


Para serem legítimas as bases da Democracia, seria indispensável que existissem a Igualdade, a Liberdade, a Fraternidade, cuja célebre trilogia a Revolução Francesa escolheu para lema.
São os homens iguais? Ninguém ousará afirmá-lo. Uns, são mais fortes, mais trabalhadores, mais económicos, mais inteligentes que outros. Decretar a igualdade absoluta, é esquecer uma inflexível lei natural – que justifica as aspirações de todos os que se querem distinguir, conquistar um nome, uma fortuna, uma posição de comando.
Liberdade absoluta – não há, também, entre os homens. Presos às cadeias familiares, às dependências sociais, às regras morais que adoptaram, às carreiras que escolheram – os homens não são nunca inteiramente livres, nem podem sê-lo.
Quanto à Fraternidade, olhe-se a História, desde o início do mundo; descobre-se uma sucessão de lutas, de crimes, de conflitos... A Fraternidade é uma bela aspiração. Nada mais.
Logo, a Democracia, supondo a Igualdade, a Liberdade, a Fraternidade – é uma quimera.

João Ameal in «Integralismo Lusitano - Estudos Portugueses».

A homogeneidade


O desenvolvimento dos meios de comunicação e a planetarização do sistema civilizacional dominante fez aparecer mais um perigo: a homogeneidade. O homem vai-se uniformizando através de um processo de vulgarização, que elimina as diferenças, as características locais e pessoais, para dar lugar ao homem médio em todas as partes do mundo.
A causa principal desta involução é a uniformização das pressões selectivas em todos os espaços humanos. Com o progresso da tecnologia e o avanço da moderna frente cultural, os mecanismos de selecção natural foram eliminados em benefício de uma pressão selectiva artificial e normalizada para todas as comunidades civilizadas. As diferenças culturais entre comunidades e nações, que surgiram em função dos diferentes desafios históricos e pressões selectivas, vão desaparecendo à medida que tudo se uniformiza. É, definitivamente, a vulgarização do homem, uma monstruosidade que nem sequer Ortega y Gasset poderia imaginar ao escrever a «Rebelião das Massas».
Este perigo, que implica uma perda nas capacidades de resposta da espécie humana no seu conjunto, apresenta também fenómenos secundários de domesticação corporal, como o aumento de gordura, diminuição de combatividade, obsessões sexuais, diminuição da selectividade sexual e outros elementos negativos para a conservação da nossa espécie. A uniformização e a vulgarização são também aspectos de uma regressão civilizacional, já que o caminho ascendente se caracteriza por uma crescente diferenciação e um maior grau de organização.

António Marques Bessa in «Ensaio sobre o fim da nossa Idade».

Portugal


Eis aqui, quase cume da cabeça
da Europa toda, o Reino Lusitano,
onde a terra se acaba e o Mar começa
e onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floreça
nas armas contra o torpe Mauritano,
deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente.

Esta é a ditosa pátria minha amada,
à qual se o Céu me dá que eu sem perigo
torne, com esta empresa já acabada,
acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
de Luso ou Lisa, que de Baco antigo
filhos foram, parece, ou companheiros,
e nela antão os íncolas primeiros.

Luís Vaz de Camões in «Os Lusíadas».

Um fado contra-revolucionário


Não namores os franceses
Menina, Lisboa,
Portugal é meigo às vezes
Mas certas coisas não perdoa
Vê-te bem no espelho
Desse honrado velho
Que o seu belo exemplo atrai
Vai, segue o seu leal conselho
Não dês desgostos ao teu pai

Lisboa, não sejas francesa
Com toda a certeza
Não vais ser feliz
Lisboa, que ideia daninha
Vaidosa, alfacinha,
Casar com Paris
Lisboa, tens cá namorados
Que dizem, coitados,
Com as almas na voz
Lisboa, não sejas francesa
Tu és portuguesa
Tu és só pra nós

Tens amor às lindas fardas
Menina, Lisboa,
Vê lá bem pra quem te guardas
Donzela sem recato, enjoa
Tens aí tenentes,
Bravos e valentes,
Nados e criados cá,
Vá, tenha modos mais decentes
Menina caprichosa e má

Lisboa, não sejas francesa
Com toda a certeza
Não vais ser feliz
Lisboa, que ideia daninha
Vaidosa, alfacinha,
Casar com Paris
Lisboa, tens cá namorados
Que dizem, coitados,
Com as almas na voz
Lisboa, não sejas francesa
Tu és portuguesa
Tu és só pra nós

Amália Rodrigues

Da Língua


Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra: – todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro. Na língua verdadeiramente reside a nacionalidade; – e quem fôr possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa, vai gradualmente sofrendo uma desnacionalização. Não há já para ele o especial e exclusivo encanto da fala materna com as suas influências afectivas, que o envolvem, o isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do Verbo irremediavelmente lhe dá o cosmopolitismo do carácter. Por isso o poliglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu patriotismo desaparece, diluído em estrangeirismo. Rue de Rivoli, Calle d'Alcalá, Regent Street, Wilhem Strasse – que lhe importa? Todas são ruas, de pedra ou de macadame. Em todas a fala ambiente lhe oferece um elemento natural e congénere onde o seu espírito se move livremente, espontaneamente, sem hesitações, sem atritos. E como pelo Verbo, que é o instrumento essencial da fusão humana, se pode fundir com todas – em todas sente e aceita uma Pátria.
Por outro lado, o esforço contínuo de um homem para se exprimir, com genuína e exacta propriedade de construção e de acento, em idiomas estranhos – isto é, o esforço para se confundir com gentes estranhas no que elas têm de essencialmente característico, o Verbo – apaga nele toda a individualidade nativa. Ao fim de anos, esse habilidoso, que chegou a falar absolutamente bem outras línguas além da sua, perdeu toda a originalidade de espírito – porque as suas ideias, forçosamente, devem ter a natureza, incaracterística e neutra, que lhes permita serem indiferentemente adaptadas às línguas mais opostas em carácter e génio. Devem, de facto, ser como aqueles «corpos de pobre» de que tão tristemente fala o povo – «que cabem bem na roupa de toda a gente».
Além disso, o propósito de pronunciar com perfeição línguas estrangeiras, constitui uma lamentável sabujice para com o estrangeiro. Há ai, diante dele, como o desejo servil de não sermos nós mesmos, de nos fundirmos nele, no que ele tem de mais seu, de mais próprio, o Vocábulo. Ora isto é uma abdicação de dignidade nacional. Não, minha senhora! Falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros! Mesmo porque aos estrangeiros o poliglota só inspira desconfiança, como ser que não tem raízes, nem lar estável – ser que rola através das nacionalidades alheias, sucessivamente se disfarça nelas, e tenta uma instalação de vida em todas, porque não é tolerado por nenhuma. Com efeito, se a minha amiga percorrer a Gazeta dos Tribunais, verá que o perfeito poliglotismo é um instrumento da alta escroquerie.

Eça de Queirós in «A Correspondência de Fradique Mendes», 1900.